Presos durante o dia em "condomínios", os porcos são soltos ao entardecer e passam a noite revirando o lixão em busca de comida |
Em algumas regiões europeias porcos são usados na caça às trufas, que
florescem entre as raízes de algumas árvores. O faro infalível do
animal leva seu companheiro humano até o esconderijo subterrâneo do
cogumelo, que chega a ser vendido a 20 mil reais o quilo, usado como
ingrediente da alta gastronomia, devido ao seu aroma inigualável.
Na
comunidade de Alto São João, em Russas (CE), os porcos também ajudam
os homens em seu trabalho à procura de gêneros comerciáveis. Porém, o
que os humanos cearenses encontram é vendido por alguns centavos de real
o quilo. Já os porcos têm mais sorte - diferentemente dos colegas
europeus, impedidos de devorar as trufas - eles podem comer o que
encontram, dividindo o resultado da empreitada com os homens.
Todo
o lixo produzido pelos 73 mil habitantes de Russas é depositado em um
aterro a céu aberto, a três quilômetros do centro da cidade. Quando os
primeiros caminhões começaram a descarregar em Alto São João, há cerca
de 20 anos, alguns moradores perceberam que o lixão poderia ser uma
fonte de renda e começaram a separar o material reciclável. Os
criadores de porcos também viram uma oportunidade de alimentar os
animais sem gastar nada, e passaram a soltá-los para que encontrassem
comida, fuçando entre os detritos.
O depósito, uma
depressão retangular no terreno, mede 200 metros por 150 metros, e fica
quase encostado nas primeiras casas do bairro. No local, os detritos
são jogados sem nenhuma separação, incluindo resíduos hospitalares.
A
partir disso conformou-se uma simbiose entre humanos e animais, que
passaram a trabalhar lado a lado. Os porcos, na busca por comida,
revolvem o lixo, fazendo aflorar o material reciclável: garrafas PET,
papelão, latas de alumínio. Os catadores passaram a considerar os porcos
seus parceiros de trabalho. Outros sócios juntam-se ao grupo:
cachorros, cabras, urubus e surpreendentes garças, algumas montando o
lombo dos porcos para fazer a pescaria.
Os porcos ajudam
muito, diz Francisco José dos Santos, 49 anos, catador desde quando
“chegou a primeira carrada” no lixão. Ele trabalha com a ajuda dos
porcos: “Eu não preciso cavoucar, é só ficar no meio deles”. A opinião é
unânime entre os trabalhadores do lixão: o porco é o melhor amigo do
catador. Porém, a amizade dura até ele estar pronto para o abate. Então
o animal é sacrificado e consumido na própria comunidade ou vendido
para os açougues de Russas.
Alguns catadores trabalham pela
manhã, quando chegam os primeiros caminhões de lixo; outros começam à
tarde, quando vem uma nova partida, e entram pela noite. Ao entardecer é
também a hora em que os criadores soltam os porcos, que passam a noite
no lixão.
A faina é intensa, num agachar e levantar
constante, o material sendo depositado em enormes sacolões, guardados
em cercados improvisados, que eles chamam de “rancho”. Cada catador tem
o seu, um espaço inviolável, respeitado por todos. Trabalham sem
proteção: cortes e furos nos pés e mãos são comuns. Alguns poucos usam
luvas improvisadas, encontradas no próprio lixão. Começa a anoitecer. O
movimento de homens e animais sugere um balé lúgubre. O ar pestilento
parece que fica mais sufocante, o miasma causa engulhos, o cheiro forte
ficará impregnado na roupa. Porém, para esses homens e mulheres é
apenas mais um dia comum de trabalho. Eles não se lamentam, consideram
normal a situação degradante, é dali que retiram o sustento.
Revoltam-se quando surgem comentários dizendo que o lixão poderá será
fechado. “Vai quebrar as nossas pernas”, diz Francisco.
Plínio Bortolotti
plinio@opovo.com.br
Sara Maia
saramaia@opovo.com.br
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