sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Vestígios do poeta

LIA DE PAULA (4/1/2005)
Belchior: um artista que, não se sabe até quando, decidiu se exilar da fama
É curioso pensar Belchior esgueirando-se pelos cantos – mais precisamente pelas fronteiras gaúchas do sul do País – na fuga dos holofotes. O simples fato de ainda empunhar seu vistoso e retinto bigode parece ser uma prova cabal do contrário. Belchior é uma figura absolutamente inconfundível para qualquer um que desconfie do significado da sigla MPB, uma face que quase clama por ser estampada em camisetas (o que faz com que seja admirável sua ausência nelas) e que exige de qualquer veterano caricaturista um esforço experimental para não repetir traços de décadas atrás. Por isso talvez o inusitado das imagens divulgadas pelo portal do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, de repórteres e câmeras seguindo o compositor e cantor cearense pelas ruas do bairro Moinho de Vento, na capital gaúcha.
 
Depois de nova reportagem veiculada no Fantástico do último domingo sobre as dívidas do artista sobralense, Belchior mais uma vez se vê na malha da mídia. Segundo a matéria, ele e a mulher, Edna, abandonaram um hotel uruguaio 4 estrelas deixando do lado de lá da fronteira roupas, livros, quadros, um notebook e uma dívida de seis meses de diárias e serviços que, de acordo com os cálculos da gerente do estabelecimento entrevistada pelo programa da TV Globo, totaliza aproximadamente R$ 30 mil. Soma-se a isso os débitos com estacionamentos (incluindo o do aeroporto de Congonhas) nos quais ele teria abandonado dois automóveis e com o locador de uma casa que servia de ateliê. Apenas a dívida brasileira já passaria dos R$ 200 mil.

O programa desta vez não conseguiu entrevistar Belchior, como aconteceu em 2009, quando a jornalista Sônica Bridi, após algumas batidas com os nós dos dedos na janela de um chalé no interior do Uruguai, ouviu do cantor que ele não responderia nenhuma pergunta sobre sua vida pessoal: “não tenho interesse na vida pessoal de ninguém”. Na ocasião, um dos argumentos utilizados por Bridi para convencê-lo da entrevista foi o de que no Brasil estava todo mundo preocupado com seu paradeiro. Quem agora ouviu respostas parecidas foi o repórter do Zero Hora ao perguntar se seria possível se esconder devido a sua notoriedade no País.

“Não, mas eu não quero (me esconder)”, respondeu Belchior. “Ele não está tentando se esconder”, completou Edna, a companheira. Belchior também afirmou que “esta notícia que está circulando é mentirosa”, negou a necessidade de esclarecer a situação para o público e confirmou que ainda é abordado diariamente por fãs. Sempre em respostas curtas, se não monossilábicas, reiteradas por Edna.

Em Fortaleza, o cantor, compositor e amigo Rodger Rogério comentou a história: “Ele deve estar passando por algum problema. Agora a Globo fica repercutindo esse negócio que ele ficou com dívida... Mas são umas dívidas pequenas, que se ele fizer cinco shows paga. O problema dele não é falta de dinheiro, é algum outro problema. Ele disse que o dinheiro dele está bloqueado no Brasil”. Rodger também disse há muito tempo não ter notícias do amigo, o que acontece também com a família, segundo Natasha Belchior, sobrinha do artista. “Desde a última reportagem do Fantástico ele já não dava notícia e a gente fica sem saber como ajudar”, disse Natasha por telefone.

Vida pessoal
A irmã do cantor, Ângela Gomes Belchior, resumiu o sentimento: “Belchior é muito correto, responsável e do bem. Se está passando por um período complicado na vida pessoal dele, isto é de caráter extremamente particular. A exploração de assuntos de foro íntimo nunca fez parte da trajetória da carreira dele e não tem qualquer interesse público. Por isso, vamos respeitá-lo e evitar qualquer julgamento. Ninguém tem o direito de fazer isso”.
Sem apresentar shows há algum tempo, o autor de “Como nossos Pais” e “A Palo Seco”, que teve o disco Alucinação (1976) eleito recentemente por este mesmo caderno como o melhor da história da música cearense, recebeu apoio nas redes sociais, com nome proclamado até para o show de abertura do Castelão. O escritor Carlos Emílio Corrêa Lima postou: “Belchior precisa ser resgatado aqui no Ceará, já que estão querendo acabar com o homem. Se fosse na Bahia, se estivessem fazendo isso com o Caetano, o João Gilberto ou o saudoso Caymmi, o mundo vinha abaixo, a Bahia toda estrilava, se arretava”.

De uma forma ou de outra, até essa história ser quitada, as referências, entre a malícia e o bom humor, a versos como “sou apenas um rapaz / latino-americano sem dinheiro no banco” ou “Se você vier me perguntar por onde andei/ no tempo em que você sonhava/ de olhos abertos lhe direi/ amigo, eu me desesperava” ressoarão intrigantemente a coerência poética e o lirismo arrebatador da obra de Belchior.

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