Por Maíra Streit
Dilma recebe faixa presidencial das mãos de Lula (Foto: Wikipedia) |
26 de outubro de 2014. Milhares de pessoas vestidas de vermelho, com
bandeiras em punho, aguardam a chegada da recém-reeleita presidenta do
Brasil. Músicas e palavras de ordem se alternam no entusiasmo de uma
plateia ansiosa. Ela chega sorrateiramente, vestida de branco e com uma
voz já meio rouca depois de tantos comícios, discursos e compromissos de
campanha.
“Brasil, mais uma vez, essa filha tua não fugiu à luta”, afirmou
Dilma Rousseff, em seu primeiro pronunciamento depois da confirmação da
vitória sobre o adversário Aécio Neves, do PSDB, em uma das disputas
mais acirradas da política nacional. A primeira mulher a presidir a
maior potência econômica da América Latina disse estar consciente e
pronta para a responsabilidade que essa eleição representa.
A oposição já mandou o recado de que, se depender dela, os próximos
anos não serão nada fáceis para o governo. Mas Dilma está acostumada a
desafios. Em seus 66 anos de vida, os acontecimentos mais marcantes de
sua trajetória coincidem com os mais emblemáticos momentos da história
do país.
Não contente em tê-la como testemunha, quis o destino que Dilma se
tornasse protagonista de um Brasil que clama por mudanças e está
disposto a deixar no passado a mácula da pobreza, corrupção e atraso. Em
um mandato marcado por incisivas políticas sociais, desafiar os
interesses da até então intocada elite econômica foi como mexer em um
vespeiro. Não faltaram ataques de toda ordem, inclusive pessoais.
Uma mulher de esquerda ocupar o cargo mais alto da República, em uma
sociedade conhecida por seu viés conservador e patriarcal, era
ultrajante demais para parte da população. A agressividade das ofensas
veio com o peso de séculos de preconceito. Dilma foi logo rotulada de
ser dura, centralizadora e intransigente por aqueles que acreditam que
somente a resignação e a ternura podem ser consideradas características
femininas.
Mas quem é, de fato, a mulher por trás da faixa presidencial? Quem
seria Dilma Rousseff na intimidade, longe dos holofotes e das
formalidades impostas aos chefes de Estado? Fórum foi
ouvir pessoas próximas à presidenta para conhecer melhor as histórias
pouco divulgadas de uma das personalidades mais influentes do mundo.
Passado de luta
Nascida em Belo Horizonte, Dilma é filha do empreendedor búlgaro
Pedro Rousseff e da dona de casa Dilma Jane. Admiradora das artes desde
muito cedo, por influência do pai, a menina começou a se interessar por
cinema, música e literatura, sendo reconhecida pelos colegas pela
expressiva capacidade intelectual. Frequentava o ambiente artístico e
foi apresentada ao jovem Milton Nascimento, em Minas Gerais, por amigos
em comum.
Na adolescência, passa a se identificar com ideais libertários, dando
início à militância política logo após o golpe militar de 1964.
Integrou organizações que defendiam a luta contra a ditadura, como o
Comando de Libertação Nacional (Colina) e a Vanguarda Armada
Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) e, por isso, passou quase três
anos presa e foi duramente torturada.
Nem as sessões de choques elétricos, socos e palmatórias a fizeram
entregar informações que pudessem comprometer seus companheiros. “Lembro
que, nos primeiros dias, tinha uma exaustão física que eu queria
desmaiar, não aguentava mais tanto choque. Eu comecei a ter hemorragia”,
contou ao jornalista Luiz Maklouf Carvalho no livro Mulheres que foram à luta armada, em um dos raros momentos em que falou abertamente sobre o assunto. “Tem um nível de dor que você apaga”, completou.
Casou-se aos 19 anos com o jornalista e militante Cláudio Galeno
Linhares, com quem ficou por um curto período. Seu segundo casamento foi
com o advogado Carlos Araújo, também fortemente atuante na resistência
ao regime. Da união, nasceu Paula, única filha do casal, que é mãe de
Gabriel, o netinho de 4 anos que costuma ser visto correndo pelos pátios
do Palácio da Alvorada.
Ao lado de Carlos, com quem passou quase 30 anos, reconstruiu a vida
no Rio Grande do Sul e ajudou na fundação do Partido Trabalhista
Brasileiro (PDT). Exerceu o cargo de secretária municipal da Fazenda de
Porto Alegre de 1985 a 1988. Foi ainda presidenta da Fundação de
Economia e Estatística e, mais tarde, secretária estadual de Minas e
Energia, de 1999 a 2002.
Presidenta lutou em grupos de resistência ao regime militar durante a juventude (Foto: Arquivo) |
Neste ano, participou da equipe que formulou o plano de governo do
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para a área energética e não
passou despercebida aos olhos do chefe. Ela foi convidada a ocupar o
comando do Ministério de Minas e Energia durante o governo petista e,
posteriormente, da Casa Civil.
O convite para a sucessão de Lula veio quase ao mesmo tempo que o
diagnóstico de câncer. Venceu as duas batalhas e, curada, se consagrou
presidenta em 2010, sendo constantemente apontada como uma das mulheres
de maior destaque pela imprensa internacional.
Amigas desde os tempos de Porto Alegre, a sociológa Miguelina Vecchio
atuou com Dilma no movimento de mulheres do PDT. Ela conta que era
muito difícil ser respeitada em um ambiente hostil como a política e que
muito do que a presidenta Dilma faz pelas mulheres em seus programas de
governo vem das dificuldades pessoais. “A prioridade às mulheres, o
combate à violência, tudo isso é parte do que ela sofreu. O que ela
passou a tornou mais humana e isso fica visível na forma de fazer
política”, afirmou.
Miguelina lembra de alguns fatos que marcaram a convivência dela com a
presidenta. “Nunca esqueço de um dia em que briguei com o meu marido e
passei a noite chorando. Acordei com o rosto inchado e não queria ir à
reunião. Ela passou na minha casa, andou comigo de carro com o vidro
aberto durante uns 40 minutos, dirigindo, e aquele vento ajudou a
desinchar os meus olhos. É o tipo de coisa que as pessoas não contam, do
quanto ela é fraterna”, comentou.
Ubiratan de Souza é outro amigo de longa data. Ele passou pela
perseguição da ditadura e foi um dos militantes comunistas trocados pelo
embaixador suíço sequestrado em 1971. No mês seguinte, foi nomeado por
Carlos Lamarca como coordenador das bases da Vanguarda Popular
Revolucionária (VPR) no Chile.
Ubiratan se formou no mesmo curso e universidade de Dilma e lembra
com carinho da “companheira presidenta”. Ele vê a eleição não como uma
conquista pessoal da petista, mas como a consagração de toda uma geração
que lutou pela democracia no país. “É muito emocionante porque ela
representa a nossa geração, os que estão vivos e aqueles que tombaram
[morreram]”.
Ele entrega um segredo de Dilma: ela gosta de dar apelido às pessoas.
“Tomei café com ela no primeiro turno e ela me gozou: ‘Bibica, tu anda
pintando o cabelo?’, perguntou, porque tenho 66 anos e o cabelo continua
preto. É bom saber que ela não perdeu o humor”, ressalta. “Dilma
conseguiu firmar uma personalidade altiva, ‘mas sem perder a ternura’,
como dizia Che [Guevara]”, lembrou.
“Eu me sinto muito envaidecido de participar da história dela”, afirma ex-companheiro
Carlos Araújo mantém a amizade de Dilma até hoje. Ele fala do
passado, mas também sobre o futuro, que imagina ser de profundo
crescimento para o país nesse segundo mandato
Carlos Araújo acredita em um mandato de Dilma melhor do que o primeiro (Foto: Comissão da Verdade) |
Fórum - O senhor esteve com a presidenta Dilma um dia antes da votação que a reelegeu. Como foi esse encontro?
Carlos Araújo - A campanha foi muito dura e desgastante. Almocei com ela no sábado. Nós temos uma amizade muito forte, de muito carinho e respeito. A Dilma faz parte da minha família e eu, da dela. A gente conversa pouco sobre política. Quando ela vem para Porto Alegre, quer mais é descansar, rir, brincar.
Carlos Araújo - A campanha foi muito dura e desgastante. Almocei com ela no sábado. Nós temos uma amizade muito forte, de muito carinho e respeito. A Dilma faz parte da minha família e eu, da dela. A gente conversa pouco sobre política. Quando ela vem para Porto Alegre, quer mais é descansar, rir, brincar.
Fórum - Como vocês se conheceram?
Araújo - Nós nos conhecemos em uma reunião no Rio de
Janeiro, durante a clandestinidade. Ela era muito novinha, com uns 21
anos. Foi uma paixão fulminante. A inteligência, a coragem e a postura
dela nas reuniões chamaram a minha atenção, além da beleza. Na segunda
vez que nos vimos, já começamos a namorar.
Fórum - Durante a ditadura, vocês dois foram presos em locais diferentes. O que o senhor lembra desse período?
Araújo - Ela foi presa antes de mim. Eu fui preso 8
meses depois. Apenas por um pequeno período ficamos na mesma cadeia em
São Paulo. A legislação dizia que, quando houvesse um casal, eles
poderiam se encontrar e receber juntos as visitas, mas não nos
reconheciam como casal [porque não haviam formalizado].
A mãe dela e a minha mãe se uniram, conseguiram entrar com um
processo administrativo e obtivemos uma certidão. Os torturadores odeiam
as mães [risos]. A gente participou das lutas sempre. Quem ia imaginar
que uma pessoa que foi torturada seria presidente da República? Nem ela,
nem nós. Mas esse é o processo, o rumo que as coisas tomaram.
Fórum - E essa imagem de durona? É a mesma imagem da Dilma que o senhor conhece?
Araújo - De forma alguma. Ela é muito afetuosa,
brincalhona, gosta de ouvir música, ler. Mas é exigente também quando
têm que cumprir alguma coisa e não cumprem.
Fórum - Vamos falar sobre a reeleição. Em
seu discurso, Dilma sinalizou a reforma política e o combate à
impunidade como algumas prioridades. Como o senhor acredita que será
esse próximo mandato?
Araújo - A reforma política é essencial. Acredito
que ela vai ter um segundo governo melhor do que o primeiro, quando teve
que criar muitos programas que estão em desenvolvimento na área social e
de infraestrutura. Acredito que o Brasil cresça, os empregos aumentem e
os salários também. O terreno está preparado para seguir com esse
projeto.
Fórum - A campanha foi bastante difícil, com
vários ataques. Essa resistência declarada pela elite do país viria da
quantidade de paradigmas rompidos pela presidenta em seu governo?
Araújo - As elites jogaram tudo. E também não existe
país no mundo com a mídia como a nossa. Essa concentração de poder não
tem que continuar. A Veja e a Globo fazem o que querem e fica
tudo por isso mesmo. Tem que ter muitos avanços. Isso vem desde 1930,
basta ver no passado, quando depuseram o Getúlio, levaram ele ao
suicídio. Se formos ver as manchetes nos jornais de 1954, são as mesmas
de agora. Com Jango foi a mesma coisa, com Lula tentaram fazer o mesmo
jogo. Tem que ter grandes avanços ainda na regulamentação da mídia.
Fórum – E com o desfecho que vimos no domingo, qual a sensação que fica depois de tudo isso?
Araújo - Toda a nossa geração apostou muito na Dilma
e gosta muito dela. É uma sensação de alívio, alegria profunda,
contentamento não só pela vitória da Dilma, mas porque não deixamos o
retrocesso ser implantado no país. Eu me sinto muito envaidecido de
participar da história dela lado a lado, por muitos anos. É um orgulho
que eu tenho de ter conhecido uma mulher tão íntegra, inteligente e
batalhadora quanto ela.
“É maravilhoso ter sobrevivido para ver esse momento”, diz ministra
A ministra de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci, é
bastante próxima à presidenta desde a adolescência. Ela relembra os
tempos da ditadura, quando as duas dividiram a mesma cela
Ministra Eleonora Menicucci relembra a convivência com Dilma na prisão (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr) |
Fórum – Como a senhora conheceu a presidenta Dilma Rousseff?
Eleonora Menicucci - Nós nos conhecemos em Belo
Horizonte ainda na adolescência, depois continuamos a relação durante o
período da universidade, eu fazendo Sociologia e ela, Economia. As
escolhas das organizações de militância nos separaram, eu fui para uma e
ela para outra. Depois nos encontramos no presídio Tiradentes. Ela foi
presa um ano antes de mim.
Fórum – E como foi a convivência no período em que estiveram presas juntas durante o regime militar?
Eleonora - Quando cheguei em outubro de 1971, fui
recebida por ela com muita solidariedade e companheirismo. O lugar era
conhecido como a Torre das Donzelas, pois abrigava de 20 a 50 mulheres
presas, o número variava muito. Essa convivência na mesma cela foi muito
importante porque consolidamos uma relação de solidariedade e afeto
muito forte. Foi muito interessante conviver com ela nesse período. É
uma pessoa bem humorada, podendo ser até sarcástica, mas muito generosa.
Era estudiosíssima, queria sempre estudar e dava a mão e o ombro para
cada uma das mulheres que chegavam ou iam para a tortura. Tem uma
passagem especial. Eu tinha uma filha de um ano e dez meses que me
visitava, eu ficava muito mal. E ela me ajudava muito a superar aquele
momento. A mãe dela era vizinha da minha mãe em Belo Horizonte e mandava
e trazia coisas para minha filha Maria.
Eu fui levada em uma noite para Juiz de Fora. Ir para outro lugar
naquele momento significava voltar para mais tortura. Antes de ir, nós
conversamos e ela me deu muita força. Eu ia algemada no camburão, em uma
viagem muito longa e lembro desse apoio. Conviver com ela e com as
outras significou a consolidação, um pacto pela vida. Em um reencontro,
muitos anos depois, nós nos abraçamos e choramos. Depois teve a posse, e
fui convidada para assumir o ministério.
Fórum – O que a presidenta conserva em relação àquela menina dos anos 1970?
Eleonora - O que ela conserva da jovem que resistiu à
ditadura e não fugiu da luta é a solidariedade, a lealdade, a
determinação, que muitas vezes nesse mundo patriarcal que nós vivemos é
confundido com intransigência. Ela é muito rígida com o cumprimento de
metas, com o bom trabalho, com a qualidade do trabalho. E também no
compromisso com a democracia. Ela não aceita e nunca aceitou injustiça,
nem na cadeia entre as companheiras, e hoje também não. Dilma é muito
verdadeira e quero reafirmar isso, que ela é radicalmente a favor da
liberdade da expressão e também contra a corrupção. Tentar vinculá-la à
corrupção é inaceitável.
Ela é a mulher certa, no momento certo para dirigir o país. Eu tenho o
maior orgulho de contribuir. A prioridade que ela dá ao tema das
mulheres vem de dentro do coração porque ela sempre foi comprometida com
a defesa desses direitos. É muito orgulho. Na celebração de mais esta
vitória, ficava me passando um filme pela cabeça, o filme de toda a
minha história com ela, a tortura, a cadeia, de como nós sobrevivemos. E
como é maravilhoso ter sobrevivido para ver esse momento [se emociona].
É uma vitória da militância e do povo brasileiro. Dilma chora, ri,
briga, fica com raiva, reflete. Ela é, antes de tudo, uma mulher comum.
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