Festivais de cinema não costumam apresentar surpresas. Geralmente, os favoritos
se confirmam, as decepções são antecipadas. Paulínia, que viveu sua sexta edição
na semana passada, contrariou a regra. O festival já estava no seu último dia,
o júri já havia estabelecido os ganhadores desta temporada (com mais uma reunião
marcada para fazer qualquer possível alteração provocada pelas duas últimas
produções que participavam da competição), parecia um jogo de cartas marcadas.
Aí começou a projeção do filme pernambucano “A história da eternidade”, primeiro
longa-metragem de Camilo Cavalcante. E tudo foi virado de cabeça pra
baixo.
Logo de cara, à plateia foi oferecido um plano deslumbrante. Com uma fotografia impecável, a câmera fixa repousa sobre uma paisagem seca, agreste, mas linda. No centro da tela, uma árvore centenária parece deslocada naquele cenário do nada. De repente, um cortejo fúnebre surge do lado direito. É o enterro de uma criança. A câmera continua fixa. O cortejo sai da tela pelo lado esquerdo. Triste, muito triste. Mas muito bonito!
Num ritmo lento, o que não deve ser confundido com falta de ritmo, o cineasta apresenta o cotidiano de uma aldeia perdida no meio da seca. Alguns casebres, poucos personagens, muita luz. Acompanhamos a história de três mulheres de três gerações diferentes. A primeira é Alfonsina, adolescente, às vésperas de completar 15 anos, criada por um pai severo, acompanhada por quatro irmãos silenciosos. Ela busca o refúgio de uma vida tão seca na figura do tio, que mora na casa da frente, e é a ovelha negra da família. É com o tio que ela encontra uma janela para o sonho. Alfonsina quer conhecer o mar. É o que ela pede ao pai como presente de aniversário. Mas é do tio que ela vai ganhar.
A segunda mulher é Querência. Ainda jovem, mas que parece envelhecida pela aridez do sertão. Solitária, talvez ela seja a mãe da criança enterrada naquele início de filme. Sofre o assédio de um sanfoneiro cego que, todos os dias, toca uma música para ela. Querência abre a janela para escutar. Mas ele sonha com o dia em que ela vai abrir a porta para ele poder entrar.
A terceira mulher é Das Dores, a mais velha das três. Ela recebe o neto naquele fim de mundo. O rapaz vem de São Paulo, com tatuagens, usando brincos e trazendo um segredo. Ele foge do quê? Em Das Dores, o neto vai despertar o desejo que parecia não existir mais.
As histórias vão sendo contadas quando começa uma cena inesperada. O tio, o “esquisito” da família de Alfonsina, sai de casa com uma vitrola portátil. Está sem camisa, maquiado, com uma calça estampada. É uma figura diferente das que vivem por ali. Ele deixa o aparelho no chão. Instala duas caixinhas de som. Pega um disco de vinil e põe pra tocar. Dos alto-falantes do cinema, explode “Fala”, de João Ricardo e Luli, na voz do Ney Matogrosso ainda dos Secos e molhados. A câmera gira em torno do personagem enquanto ele dubla o cantor. Ali, onde menos se espera, num sertão de fim do mundo, brota a arte. É uma cena arrebatadora. Tão arrebatadora que a plateia não se conteve e aplaudiu. Há quanto tempo você não vê uma plateia de cinema aplaudindo um filme no meio da projeção?
Ali não teve pra mais ninguém. Com aquela cena, Irandhir Santos, que interpreta o tio, ganhou o prêmio de melhor ator. Camilo Cavalcante tornou-se favorito para o prêmio de direção. E, se o filme mantivesse aquela força, seria certamente o melhor do festival. Manteve.
Faltava resolver o mais difícil: como escolher uma melhor entre as três atrizes do filme? A estreante Débora Ingrid interpreta Alfonsina, a adolescente. É uma luz que faz a tela brilhar. Uma Sonia Braga! Uma Dira Paes! Uma força juvenil que toma conta de cada plano em que está incluída. Conquista a plateia desde o primeiro momento em que encara a câmera. Marcélia Cartaxo é Querência, um papel difícil, praticamente sem falas. Mas Marcélia interpreta com a pele, não precisa de falas. Emociona desde sua primeira aparição. Zezita Matos é veterana, dama no teatro da Paraíba, esteve no elenco de “O céu de Suely” e “Cinema, aspirinas e urubus”, mas não é um rosto conhecido do Sul. Pior para o Sul. Tem que ser uma atriz corajosa para encarnar a Das Dores. Ela é. Resultado: as três dividiram o prêmio de melhor atriz.
“A história da eternidade!” é um filme que dialoga com o Cinema Novo, mas é mais generoso com a plateia do que as produções daquele movimento. É um filme poético, o que é muito difícil de se fazer sem ser pretensioso ou vazio. É um filme que seduz a plateia sem fazer concessões. Quando o cinema é bem feito, nenhuma arte é mais envolvente. É o caso de “A história da eternidade”. Ao receber seu prêmio, Débora Ingrid disse que sentia “uma alegria do tamanho do mar de Alfonsina”. É este também o tamanho do prazer do público ao assistir ao filme de Camilo Cavalcante. Uma obra-prima.
Logo de cara, à plateia foi oferecido um plano deslumbrante. Com uma fotografia impecável, a câmera fixa repousa sobre uma paisagem seca, agreste, mas linda. No centro da tela, uma árvore centenária parece deslocada naquele cenário do nada. De repente, um cortejo fúnebre surge do lado direito. É o enterro de uma criança. A câmera continua fixa. O cortejo sai da tela pelo lado esquerdo. Triste, muito triste. Mas muito bonito!
Num ritmo lento, o que não deve ser confundido com falta de ritmo, o cineasta apresenta o cotidiano de uma aldeia perdida no meio da seca. Alguns casebres, poucos personagens, muita luz. Acompanhamos a história de três mulheres de três gerações diferentes. A primeira é Alfonsina, adolescente, às vésperas de completar 15 anos, criada por um pai severo, acompanhada por quatro irmãos silenciosos. Ela busca o refúgio de uma vida tão seca na figura do tio, que mora na casa da frente, e é a ovelha negra da família. É com o tio que ela encontra uma janela para o sonho. Alfonsina quer conhecer o mar. É o que ela pede ao pai como presente de aniversário. Mas é do tio que ela vai ganhar.
A segunda mulher é Querência. Ainda jovem, mas que parece envelhecida pela aridez do sertão. Solitária, talvez ela seja a mãe da criança enterrada naquele início de filme. Sofre o assédio de um sanfoneiro cego que, todos os dias, toca uma música para ela. Querência abre a janela para escutar. Mas ele sonha com o dia em que ela vai abrir a porta para ele poder entrar.
A terceira mulher é Das Dores, a mais velha das três. Ela recebe o neto naquele fim de mundo. O rapaz vem de São Paulo, com tatuagens, usando brincos e trazendo um segredo. Ele foge do quê? Em Das Dores, o neto vai despertar o desejo que parecia não existir mais.
As histórias vão sendo contadas quando começa uma cena inesperada. O tio, o “esquisito” da família de Alfonsina, sai de casa com uma vitrola portátil. Está sem camisa, maquiado, com uma calça estampada. É uma figura diferente das que vivem por ali. Ele deixa o aparelho no chão. Instala duas caixinhas de som. Pega um disco de vinil e põe pra tocar. Dos alto-falantes do cinema, explode “Fala”, de João Ricardo e Luli, na voz do Ney Matogrosso ainda dos Secos e molhados. A câmera gira em torno do personagem enquanto ele dubla o cantor. Ali, onde menos se espera, num sertão de fim do mundo, brota a arte. É uma cena arrebatadora. Tão arrebatadora que a plateia não se conteve e aplaudiu. Há quanto tempo você não vê uma plateia de cinema aplaudindo um filme no meio da projeção?
Ali não teve pra mais ninguém. Com aquela cena, Irandhir Santos, que interpreta o tio, ganhou o prêmio de melhor ator. Camilo Cavalcante tornou-se favorito para o prêmio de direção. E, se o filme mantivesse aquela força, seria certamente o melhor do festival. Manteve.
Faltava resolver o mais difícil: como escolher uma melhor entre as três atrizes do filme? A estreante Débora Ingrid interpreta Alfonsina, a adolescente. É uma luz que faz a tela brilhar. Uma Sonia Braga! Uma Dira Paes! Uma força juvenil que toma conta de cada plano em que está incluída. Conquista a plateia desde o primeiro momento em que encara a câmera. Marcélia Cartaxo é Querência, um papel difícil, praticamente sem falas. Mas Marcélia interpreta com a pele, não precisa de falas. Emociona desde sua primeira aparição. Zezita Matos é veterana, dama no teatro da Paraíba, esteve no elenco de “O céu de Suely” e “Cinema, aspirinas e urubus”, mas não é um rosto conhecido do Sul. Pior para o Sul. Tem que ser uma atriz corajosa para encarnar a Das Dores. Ela é. Resultado: as três dividiram o prêmio de melhor atriz.
“A história da eternidade!” é um filme que dialoga com o Cinema Novo, mas é mais generoso com a plateia do que as produções daquele movimento. É um filme poético, o que é muito difícil de se fazer sem ser pretensioso ou vazio. É um filme que seduz a plateia sem fazer concessões. Quando o cinema é bem feito, nenhuma arte é mais envolvente. É o caso de “A história da eternidade”. Ao receber seu prêmio, Débora Ingrid disse que sentia “uma alegria do tamanho do mar de Alfonsina”. É este também o tamanho do prazer do público ao assistir ao filme de Camilo Cavalcante. Uma obra-prima.
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