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| O juiz Edilson Chagas, que foi flanelinha e vendedor de bananas na infância e hoje é o titular da Vara de Falências, Recuperações Judiciais, Insolvência Civil e Litígios Empresariais do DF (Foto: Raquel Morais/G1) |
Quem vê o juiz brasiliense Edilson Enedino das Chagas se desdobrando
entre os processos da Vara de Falências, o posto de professor de direito
empresarial e a preparação para o doutorado mal pode imaginar que esse é
um desafio pequeno perto dos quais já precisou enfrentar. Seu primeiro
trabalho foi aos 8 anos, como vendedor de bananas, para ajudar a mãe.
Desde então, ele já foi vendedor de picolés, flanelinha, jornaleiro,
ajudante de obras e faxineiro. Mas orgulho mesmo o magistrado sente
quando fala sobre o que espera para o futuro: "um sonho? Poder ser
nomeado para o Supremo Tribunal Federal. Mas é uma chance em 5 milhões",
diz, entre risos.
Experiência de vida para ocupar o cargo de ministro ele acredita ter o
suficiente. Chagas nasceu em 1970 e começou a enfrentar dificuldades
assim que deixou a maternidade. Filho de um tratorista e uma dona de
casa, ele morava em uma invasão no Paranoá e dividia o pouco espaço do
barraco com os quatro irmãos. Quando tinha 1 ano, o pai conseguiu uma
casa de um único cômodo por meio de um programa habitacional.
"Essa talvez tenha sido a maior âncora que meu pai nos deixou. Casa dá
dignidade. Poder entrar em um lugar e fechar a porta, dizer que é o seu
porto, onde você pode ancorar o seu navio, dá um alívio enorme", afirma
Chagas.
Pouco depois o pai morreu e a família começou a lidar com problemas
ainda maiores. Os filhos e a viúva precisavam se virar com um salário
mínimo por mês. Sem dinheiro nem para comprar comida, eles dependiam de
doações da Legião Brasileira de Assistência, programa assistencial do
governo federal, que distribuía sopas para grávidas. O alimento era
usado nos cafés da manhã, almoços e jantas durante a maior parte do mês.
Cansado de ver o sofrimento da mãe para garantir a sobrevivência da
família e tendo aprendido que não podia pegar nada que fosse dos outros,
mesmo que fosse emprestado, aos 8 anos ele decidiu trabalhar. O garoto
foi a uma distribuidora de frutas e pediu uma caixa de bananas para
vender durante o dia. O acordo era que, depois de quatro horas, ele
devolveria o que restasse e dividiria os lucros com o dono.
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| O juiz de Brasília Edilson Chagas na infância, usando roxo, em foto tirada com três dos irmãos (Foto: Edilson Chagas/Arquivo Pessoal) |
"Eu ganhava o equivalente a R$ 5 por dia, mas eu me sentia muito feliz.
Foi com esse trocado que a gente pôde, por exemplo, passar a comprar
pão do dia. Aquilo foi realmente um sonho para a gente. Imagina não
precisar esperar para só comprar pão amanhecido! Só que, é claro, o que
eu colocava na mão da minha mãe não durava, e de fato era bem pouco.
Ainda assim, me sentia satisfeito com o pouquinho que a gente conseguia a
mais", lembra.
Meses depois, observando que o rendimento era pequeno, o menino passou a
vender picolés. Ele percorria cerca de oito quilômetros todos os dias
para vender 40 unidades e lucrava até R$ 6. As dificuldades eram com
crianças mais velhas que se recusavam a pagar e chegavam a agredi-lo.
"Mas, quando dava certo, era bom. Dava a manteiga. E, às vezes, rendia
até um fígado de galinha ou o dorso do frango. A sensação era de cumprir
um dever."
Aos 13 anos, já trabalhando como flanelinha de um supermercado perto de onde morava, no Gama,
Chagas conseguiu realizar seu maior sonho: tomar uma lata de leite
condensado. Ele juntou as moedas ganhadas durante as sete horas de
trabalho para poder comprar a guloseima que até então nunca havia
entrado na casa da família.
"Quando todo mundo foi dormir, furei um buraquinho e comecei a beber.
Meu Deus, aquele foi o melhor dia da minha adolescência! Eu acordei seis
vezes à noite para tomar um pouquinho de cada vez, queria que nunca
acabasse", conta o juiz. "Isso me instigava mais, me dava vontade de
crescer. A minha fome parece que abria meu apetite para estudar,
aprender, querer ir além."
A rotina de trabalho era dividida com os estudos, uma prioridade para a
mãe de Chagas. Na época, ele estudava em um colégio "cheio de gangues" e
os alunos usavam drogas até dentro da sala de aula. O comportamento era
repudiado pelo jovem, que não havia tomado partido por nenhum dos
grupos. Um dia, o rapaz foi abordado pelo líder de um deles.
"Ele pediu para que eu continuasse prestando atenção para poder
ensiná-los depois as matérias e proibiu que me oferecessem drogas. Por
incrível que pareça, isso me protegeu. E foi bom, porque até me deu um
método de ensino", diverte-se. "Eu já troquei lanche por orientação para
quem tinha dúvida. Tudo era realmente uma luta, até comer."
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Sonhando em ser médico, Chagas chegou a trabalhar como ajudante de
obras antes de terminar o ensino médio ao mesmo tempo em que concluía um
curso profissionalizante. No mesmo período, a mãe conseguiu uma
reavaliação da pensão deixada pelo marido e passou a ganhar o suficiente
para não depender mais do esforço do filho. O jovem fez então curso de
fuzileiro naval e prestou concurso para a Polícia Militar. Ele diz que
já estava acostumado a ter o próprio dinheiro e não queria passar a
depender da família.
Poucos anos depois, em 1991, o rapaz foi aprovado como faxineiro de uma
empresa terceirizada que prestava serviços para o Tribunal Superior do
Trabalho. A proximidade com a área de direito levou Chagas a se
interessar pelo curso. Ele prestou vestibular em uma faculdade
particular e conseguiu ser aprovado - a concorrência era de 27
candidatos por vaga.
Em 1998, surgiu a oportunidade para tentar uma vaga no Tribunal de
Justiça do Distrito Federal. O incentivo veio de um amigo, mas o
ex-flanelinha ficou reticente. "Eu pensava: 'Moço, quem é que passa
assim nisso?' Só me vinham esses pensamentos. 'Por que você? Olha que
tipo de emprego você já teve, você vendia bananas.' Achava a ideia
absurda."
Chagas decidiu fazer o concurso mesmo assim e, sem abandonar o
trabalho, passou três meses se dedicando à preparação para a prova.
Havia quase 900 inscritos para 38 vagas, e, pouco antes da aplicação dos
testes, uma lei aprovou a criação de mais 110 vagas.
"Pensei: 'Agora eu passo'. Então ouvi uma voz que me perguntava se eu
dependia da quantidade de vagas. Pensei em Deus e pedi que ele me
perdoasse. Mas aí eu disse: 'OK, não dependo da quantidade de vagas,
dependo de ti. Mas se ainda assim puder me dar uma vaguinha, eu
agradeço'. Fui sincero", lembra, bem-humorado.
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| O juiz Edilson Enedino Chagas, na sala de audiências da Vara de Falências, Recuperações Judiciais, Insolvência Civil e Litígios Empresariais do Distrito Federal (Foto: Raquel Morais/G1) |
O cansaço da prova extensa deu lugar à ansiedade. O magistrado lembra
que decidiu ligar para a responsável pela prova na segunda-feira
seguinte para perguntar se já havia resultado. Após ouvir uma resposta
positiva por telefone, questionou: "E eu, passei?".
"Eu nunca vou me esquecer disso: 'Doutor Edilson, o senhor passou, sim.
E pode preparar o discurso de posse, porque o primeiro colocado sempre
discursa. E essa pessoa é você.' Eu não cabia em mim", afirma Chagas.
Vida após virar juiz
Depois de assumir uma vaga no Tribunal de Justiça, o ex-flanelinha também passou a dar aulas. Ele concluiu o mestrado em direito e atualmente se prepara para fazer doutorado em psicanálise. Bastante religioso, ele aproveita os finais de semana para fazer obras assistenciais da igreja que frequenta no Gama.
Depois de assumir uma vaga no Tribunal de Justiça, o ex-flanelinha também passou a dar aulas. Ele concluiu o mestrado em direito e atualmente se prepara para fazer doutorado em psicanálise. Bastante religioso, ele aproveita os finais de semana para fazer obras assistenciais da igreja que frequenta no Gama.
"Ter crescido na escassez me ensinou a valorizar tudo o que chega para
mim. Tudo o que me feriu eu tento evitar que aconteça a outras pessoas",
disse ao G1. "Nunca peguei o que é dos outros, nem
emprestado. O meu pode ser o pior ou o mais feio, mas é o meu. É como a
nossa casa zero-quarto [de um único cômodo, conseguida pelo pai]."
Mesmo se considerando sem traumas ou mágoas por causa do passado
difícil, o magistrado confessa que mantém alguns pensamentos da
infância. Um deles é a mania de economizar e o sentimento de culpa
quando compra algo caro, como quando precisou ser "convencido" pela
mulher de que merecia ter um "carro do ano". O outro é gostar de ir a
supermercados.
"Meu hobby é dar aula, mas meu prazer é fazer compras. Essa marca ficou
em mim. Às vezes saio da faculdade às 22h e vou correndo ao
supermercado. E se tem algo que me dói é ver uma pessoa na fila do caixa
tendo que escolher o que levar, por não ter dinheiro para tudo. Um dia
eu acabei pedindo à mulher para passar todas as coisas, não deixar nada,
paguei a diferença. Dói ver a pessoa tendo que se decidir entre o
básico, não havia nada de supérfluo", conta Chagas.
O magistrado se orgulha de os três filhos adolescentes não precisarem
passar pelas mesmas dificuldades que ele viveu. Na época, a mãe é quem
fazia as roupas para as crianças, já que não havia dinheiro para
comprá-las. Já o trio pode escolher o que quer, inclusive em relação à
alimentação.
"Mas quando meus filhos olham torto para a comida fico realmente
triste. Eu, na idade deles, não queria nada de extravagante. Só queria
arroz, feijão e bife. Isso deveria ser um direito fundamental, toda
criança deveria ter isso", diz o juiz. "Então, sim, me dói ver alguém
olhar para um prato de comida e dizer que não quer ou que não há nada de
bom."
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| O juiz Edilson Enedino Chagas, junto com a mulher e os filhos em viagem aos EUA (Foto: Edilson Chagas/Arquivo Pessoal) |
Com uma rotina puxada - o juiz faz questão de despachar em até 24 horas
os cerca de 40 processos que recebe por dia, Chagas sonha em poder
levar a vivência difícil para uma cadeira no STF. Ele acredita que as
chances são remotas e já se planeja para trabalhar na área de direito
empresarial quando se aposentar.
"Depois que o Joaquim Barbosa anunciou que sairia, todo mundo passou a
brincar comigo. Eu gostaria muito, acho que seria uma vitória de
verdade. Acho que posso contribuir com essa visão de quem vem do povo",
declarou. "Eu não consigo ir para casa sabendo que tem gente dependendo
de mim, precisando de mim. Eu já esperei muito dos outros e nem sempre
tinha quem me estendesse a mão. Por isso, gosto de dar suporte quando
isso está ao meu alcance."




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