É verdade que nem todo cearense vaia o sol, bota apelido nos outros
ou faz piada com a desgraça, alheia ou própria. Para muita gente, esse
sangue moleque que correria nos nascidos aqui não passa de estereótipo.
Mas não tem como negar: certos tipos parecem ter existido para fazer jus
à fama do humor sagaz do Ceará.
Mesmo quando a situação não
incita o riso, a rapidez da resposta e a inteligência da tirada acabam
promovendo o sujeito a um rol nem sempre seleto, o dos frasistas e suas
mentes privilegiadas para a pilhéria.
Quintino Cunha
(1845-1943), advogado e escritor que frequentava a Praça do Ferreira dos
anos 1920 e 1930, é um dos mais lembrados. São tantos os causos
emprestados a ele que é preciso fazer a ressalva de que nem tudo que se
conta por aí é “quinquinhada”. Não se sabe ao certo qual situação
inspirou Quintino, mas são dele os versos: “Adeus casinha da fome,
jamais me verás tu/ Aqui criei ferrugem nos dentes, teia de aranha no
cu”.
A espirituosidade do poema, dizem, teria nascido de uma
temporada na casa de amigos, ainda na infância, onde não lhe serviram
nada além de bolachas e água. Mas se fala também de um curto período na
fazenda de um de seus clientes, conhecido pela mesquinhez.
Outra
vez, conta Francisco José Souza na biografia Quintino Cunha (Edições
Demócrito Rocha), ele teria presenciado uma discussão acalorada entre um
advogado e um promotor quando ocupava temporariamente o cargo de juiz
da comarca de Lages. Os ânimos estavam tão exaltados que Quintino teve
de intervir - mas do seu jeito.
“O senhor é um mentiroso!”,
gritou um. “E o senhor é um caluniador!”, esbravejou o outro. Foi a vez
de Quintino: “Agora que os dois já se apresentaram, podemos continuar
os debates”.
Neto do escritor, Plautus Cunha Filho conta que a
verve do avô não teve herdeiros na família. “Ele era único”, diz,
orgulhoso de ter visto Chico Anísio consagrar, em seu último show com
Tom Cavalcante, que todos os humoristas descendem de Quintino.
Outro
intrépido intelectual dos tempos de Belle Epóque, Francisco de Paula
Ney (1858-1897) também fez fama com seus chistes. Poeta e jornalista,
mesmo morando por muito tempo no Rio de Janeiro, é dele um dos epítetos
mais conhecidos sobre Fortaleza. “A loira desposada do sol” está no
soneto de autoria de Ney que leva o nome da Capital.
Segundo a
pesquisadora de literatura cearense Lilian Martins, Paula Ney era
conhecido pelos amigos e desafetos como sujeito inteligente e de
respostas prontas. Sempre à mesa dos bares da rua do Ouvidor, no Rio de
Janeiro, “seu humor fluía com facilidade”.
Com o correr dos
anos, a safra de frasistas cearenses só se renovou. Publicitário que
também foi secretário estadual da Cultura, Augusto Pontes (1935-2009) é
considerado por muitos o guru da geração de intelectuais das décadas de
1970 e 1980 em Fortaleza.
Algumas de suas frases mais famosas
viraram música na voz de Belchior e do Pessoal do Ceará. “Vida/ vela/
vento/ leva-me daqui” é uma delas e aparece em “Mucuripe”. Mas há outras
tantas sobre política, amor, filmes. “A união só se faz à força” e “Em
briga de amor quem perde, ganha” são dois exemplos. Amigo do arquiteto e
compositor Fausto Nilo, ele gostava de soltar quando encontrava os
companheiros de bar:
- Turma boa, tenho duas notícias, uma boa e uma ruim. Qual vocês querem ouvir primeiro?
- A boa!
- Fausto Nilo vem aí!
- E a ruim?
- Ele vai cantar!
SAIBA MAIS
AUGUSTO PONTES
“Ele fazia várias versões das frases. Se divertia horrores, era super vaidoso com isso, mesmo fingindo que não era. Gostava muito de fazer as pessoas rirem”, lembra Natércia Pontes, filha de Augusto, publicitário e ex-secretário de Cultura do Estado.
“Ele fazia várias versões das frases. Se divertia horrores, era super vaidoso com isso, mesmo fingindo que não era. Gostava muito de fazer as pessoas rirem”, lembra Natércia Pontes, filha de Augusto, publicitário e ex-secretário de Cultura do Estado.
Sempre com um
tirada na manga, mas também “no bolso, no paletó e principalmente no
chuveiro -- ele adorava falar essas coisas no chuveiro e depois
anotar”, Natércia diz que há um sem-fim de situações em que o pai não
perdia a oportunidade de brincar com as palavras.
Traço
comum entre frasistas, essas figuras boas de raciocínio e leves de
alma, além de não perder o timing, eles costumam não se importar quando
lhe atribuem uma autoria indevida em situação engraçada; querem mesmo é
manter o riso.
SERVIÇO
Quintino Cunha (2007)
Autor: Francisco José Souza
Editora: Edições Demócrito Rocha
Quanto: R$ 9,50
Biografia
do poeta e jurista cearense que fez fama não apenas nos fóruns, mas
também nas praças e bares. Conhecido por suas tiradas espirituosas,
amplamente divulgadas pelo filho Plautus em seu livro Anedotas de
Quintino, o poeta publicou seu famoso livro Pelo Solimões na Europa,
onde recebeu uma medalha do rei de Portugal.
Bonito pra chover – ensaios sobre a cultura cearense (2003)
Autor: Gilmar de Carvalho (organizador)
Editora: Edições Demócrito Rocha
Esgotado.
O
livro reúne 26 ensaios que investigam o que fez do Ceará um lugar
diferente. Os autores escrevem e questionam desde nossa decantada
cordialidade à capacidade de ganhar o mundo. Das raças que nos formaram à
culinária. Dos marcos históricos aos arremedos de cultura. Complexo e
abusado, Bonito pra Chover não é uma obra que festeja ou dote o povo de
uma dignidade de que ele não tem, mas é o livro que busca um novo
caminho e que certamente almeja fazer desse povo algo digno de nota.
Raphaelle Batista
raphaellebatista@opovo.com.br
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