segunda-feira, 29 de abril de 2013

Indiferença ao ícone cultural: Dia de Iracema passará em branco


Comemorada no dia 1º de maio, data não terá programação oficial da Secultfor ou Setfor, apesar da Lei Municipal

Se é fato o que a filósofa Simone de Beauvoir afirmou: "não se pode escrever nada com indiferença", a história cotidiana de Fortaleza, em relação ao seu patrimônio e bens afetivos, corre o risco de não passar de breve lembrança num futuro próximo. Senão, responda rápido: o que comemoramos em 1º de maio? Se assinalou o Dia do Trabalho, acertou. No entanto, ignorou que a data é também uma homenagem à Iracema, a "virgem dos lábios de mel" da obra-prima do escritor cearense José de Alencar.

Iracema Guardiã é de autoria do artista plástico Zenon Barreto

Instituída por Lei Municipal, publicada no Diário Oficial de fevereiro de 2012, a data foi escolhida por ser o aniversário de nascimento do autor e pelo fato de a personagem, imortalizada no livro, ser um ícone cultural intrinsecamente ligado à Cidade e ao fortalezense. A despeito disso, esse dia passará em "brancas nuvens" no calendário oficial da Capital. Nem a Secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor) ou a do Turismo (Setfor) organizaram programação para marcar o evento.

A indiferença ao ícone cultural da Cidade começa pela má-conservação dos seis monumentos espalhados pela Capital daquela considerada "a mãe do cearense", passando pelo desrespeito da própria gestão municipal. Um exemplo disso é observada na Estátua Iracema, esculpida em cimento armado pelo pernambucano Corbiniano Lins e inaugurada em 24 de junho de 1965, na enseada do Mucuripe. No monumento, a índia Iracema, seu marido Martim Soares Moreno, o filho Moacir e o cão Japi.
Ali, o mar também compõe o cenário perfeito para visitantes de todos os lugares. No entanto, boxes de venda de peixe foram instalados entre a estátua e os "verdes mares bravios". Quem passa por lá, logo percebe a incoerência.

"O legal seria fotografar o cenário todo, ou seja, a estátua, a praia e o mar. Belíssimos, mas não deu", lamenta o turista mineiro Márcio Júnior.

O casal baiano Adriano Damasceno e Milena Vieira também comenta o absurdo. "Não era para ser um cartão-postal só? É meio esquisito o que a própria cidade faz com seus pontos turísticos", ironiza ele.

É contraditório mesmo, afirma o turismólogo Gerson Linhares. Segundo ele, se não fossem esforços individuais, como o Programa Iracema - o Retrato de Fortaleza, do Departamento de Letras Vernáculas, da Universidade Federal do Ceará (UFC), sob a coordenação da professora Maria Ednilza Oliveira Moreira, ou da Organização Não-Governamental (ONG) Caminhos de Iracema - que mantêm viva a imagem da índia guerreira - não saberia estimar como seria. "É bem complicado", diz.

O pesquisador Pedro Vasconcelos lembra que Iracema, a criação mais famosa da obra alencarina, saiu da literatura e passou para outras formas de manifestações artísticas, percorrendo as artes plásticas (pintura e escultura), artes visuais (cinema), dança, música, além de ser retratada também pela cultura popular. Está no Hino de Fortaleza e na memória afetiva da população. "Sem falar no corte cabelo de muitas mulheres e no coração da gente", aponta.

Projetos

A professora Maria Ednilza Oliveira e seu grupo formado por bolsistas do curso de Letras Vernáculas - Lígia, Roberto, Jorge, Bruna, Mônica e Neto - desenvolvem projetos que abrangem rádio, artesanato e palestras.

Para eles, é preciso mais. O grupo defende um cuidado maior em cada estátua da índia, situada no Mucuripe, Praia de Iracema, Centro, Messejana e Edson Queiroz, e que elas constituam um roteiro turístico oficial.

Na Lagoa de Messejana, a imagem de cor verde, não agrada à população, além disso, a bomba que jogava água na estátua foi roubada, faz tempo , sem que a Prefeitura tome as providências para recuperá-la. Também não existem placas indicativas

Para isso, apontam, torna-se necessária uma estrutura de sustentação definida, em termos institucionais e com a formalidade cabível, a fim de garantir a manutenção desse bem. Demanda, indicam, uma ação específica que exige recursos humanos para a vigilância e guarda, continuamente, cuidados com os espaços ocupados, bem como um serviço de recepção constante, além de outras ações permanentes.

"Apelamos para que cada fortalezense - pessoa física ou instituição - tome para si a responsabilidade de cuidar de nossa imagem, através de Iracema", convocam os integrantes do projeto.

É preciso zelar, defendem, cada um dentro de suas limitações, pela conservação desse patrimônio. "Afinal, que impressão terão os turistas, ao lembrarem-se que estiveram em Fortaleza, a terra de Iracema?", indagam.

O autor da lei que instituiu o Dia de Iracema, vereador Guilherme Sampaio, explica que o programa da UFC o inspirou a apresentar a proposta. "Mesmo sendo uma personagem fictícia, a história da tabajara ajuda a contar a formação do Ceará".

Segundo ele, a pesquisa realizada pelo programa identificou que Iracema traz elementos que remontam ao surgimento do povo do Ceará e à geografia de Fortaleza. "A obra mostra a união entre as etnias indígena e portuguesa, as alianças, os afetos. Cita as lagoas da Messejana, da Parangaba, a praia. É um livro rico, que mostra as matrizes culturais de Fortaleza".

Na sua avaliação, a lei deveria gerar mais informação para a apresentação da cultura fortalezense pelos profissionais do trade turístico e para a difusão da obra e da personagem associada à Cidade. Além disso, de acordo com o vereador, a oficialização do ícone deve refletir na preservação dos monumentos e na valorização do turismo cultural.

Visitas

Outro projeto que procura manter a memória viva é o Projeto Caminhos de Iracema, que visita pontos onde existem estátuas da personagem ou que marcaram a vida de José de Alencar. A excursão é feita a bordo do trenzinho que circula na Beira-Mar e visita locais como Barra do Ceará, Praia de Iracema, Mucuripe, Lagoa de Messejana, Casa José de Alencar e Parangaba.

Para o presidente da ONG, Luiz Falcão, o objetivo é resgatar a cultura de Iracema. "Não se vê as pessoas trabalhando a história da índia como produto cultural e patrimonial em Fortaleza e no Ceará. No próximo dia 5 de maio, haverá mais um passeio, com saída Praça do Ferreira, às 7h30", informa.

A trágica história da bela índia apaixonada pelo guerreiro branco é contada por José de Alencar com o ritmo e a força de imagens próprios da poesia. "Foi aqui, em Fortaleza, onde Iracema, juntamente com seu esposo Martim, fixou residência e trouxe ao mundo Moacir, o primeiro filho desta terra, do ponto de vista lendário", salienta a professora Maria Ednilza.

A obra é atualíssima, salienta a socióloga Tânia Araújo. Serve para sensibilizar os jovens para convivências mais harmoniosas com o meio em que se vive e os grupamentos humanos mais frágeis. "É uma obra viva e seu símbolo maior, Iracema, nos inspira pela força e amor à terra", destaca Tânia.

A Setfor não se pronunciou acerca da instalação dos boxes de venda de peixes entre a estátua de Iracema e o mar, no Mucuripe, nem sobre a má-conservação dos seis monumentos em homenagem à índia existentes na Capital.

Mais informações

Caminhos de Iracema: 8504 9318 ou 8835 9915
Programa Iracema - O Retrato de Fortaleza - Curso de Letras Vernáculas (UFC): 32231438

ENQUETE

Qual a importância dos monumentos?

"Conheço as estátuas de Iracema da Praia de Iracema, Messejana e Mucuripe. Acho todas muito bonitas e são importantes para a cultura da Cidade. Sinto orgulho ao trazer amigos de fora para visitar os locais"

Altamira Pereira Marinho
Técnica de Enfermagem

"As imagens são muito bonitas, mas falta o sentimento de pertencimento da população de Fortaleza para com o ícone Iracema. É preciso que todos da Cidade cuidem das estátuas, pois são pontos de atração turística"

Laura Moça Ferreira
Bancária

"Sempre que vou à Praia de Iracema, observo uma dessas estátuas, a do arco. Acho lindíssima e faz parte de nossa história. Por isso, é importante que elas passem por manutenção e recebam atenção de todos nós"

Maria Betânia da Silva
Autônoma

FIQUE POR DENTRO

Obra, publicada em 1865, é um poema em prosa

Em Iracema, José de Alencar construiu uma alegoria perfeita do processo de colonização do Brasil e de toda a América pelos invasores portugueses e europeus em geral. O nome é um anagrama da palavra América. Já o nome de seu amado, Martim, remete ao deus greco-romano Marte, o deus da guerra e da destruição.

A obra-prima conta a triste história de amor entre a índia tabajara Iracema, a virgem dos lábios de mel e Martim, primeiro colonizador português do Ceará. Além disso, o assunto do livro é também a história da fundação do Ceará e o ódio de duas nações inimigas (tabajaras e pitiguaras). Estes habitavam o litoral cearense e eram amigos dos portugueses.

Os tabajaras viviam no Interior e eram aliados dos franceses. O autor recorreu a circunstâncias históricas, como a rixa entre as duas tribos e utilizou personagens reais, como Martim Soares Moreno e o índio Poti, que depois viria a adotar o nome cristão de Antônio Felipe Camarão.

LÊDA GONÇALVES
REPÓRTER

OPINIÃO DO ESPECIALISTA

Data é esquecida e monumentos são ignorados

No próximo dia 1º de maio, comemora-se o Dia de Iracema, para quem não sabe. Esse dia foi instituído por lei municipal e pouco se tem a comemorar nessa data. A Cidade de Fortaleza tem, atualmente, seis estátuas que ficam em logradouros públicos e remetem à famosa "virgem dos lábios de mel". Desnecessário é dizer que todas encontram-se em péssimo estado de conservação, a exemplo de outros monumentos existentes. Sem falar na falta de visão dos "planejadores" da Cidade. Na reforma da Beira-Mar, a Prefeitura instalou os boxes para venda de peixe exatamente entre o monumento Iracema, esculpido em cimento armado pelo pernambucano Corbiniano Lins, e outro cartão-postal da Capital, o mar. É complicado. ..

Sendo assim, lamentavelmente e mais uma vez, constata-se a falta de políticas que remetem ao nosso patrimônio cultural, bem como uma fiscalização e conservação efetivas dos espaços públicos destinados ao lazer coletivo. O antigo marco do Centro Histórico de Fortaleza, a Praça do Boticário Ferreira, hoje serve de lavanderia a céu aberto para moradores de rua. Voltando à nossa mãe-índia e mito fundador, percebe-se o quanto somos desconectados de nossas raízes culturais. Esse dia não deveria passar em branco, assim como deveríamos resgatar as nossas matrizes culturais: a lusitana, a ameríndia e a negra. Caso contrário, correremos sério risco de ficarmos amorfos, sem identidade, sem perspectiva e repetindo velhos erros do passado.

Eustáquio Alvarenga Júnior
Advogado e historiador

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