A professora Luma Andrade
defendeu tese em agosto de 2012 e tornou-se a primeira travesti a ter
título de doutorado no País, aos 35 anos. Cinco professores formaram a
banca que avaliou o trabalho na UFC. A tese foi Travesti na Escola:
Assujeitamento e/ou Resistência à Ordem Normativa. Luma disse que agora
se prepara para ingressar num pós-doutorado na mesma temática, mas ainda
não tem definido o tema. A professora pesquisou o tratamento dado a
travestis em escolas públicas de três cidades cearenses.
BASTIDORES
O nome de Luma Nogueira de Andrade antes da mudança no registro era João Filho Nogueira de Andrade.
Luma
assinou o nome João por 30 anos. Há apenas três, ela conseguiu a
mudança na Certidão de Nascimento e, com isso, atualizou o nome em todos
os documentos.
A primeira travesti doutora do País foi
candidata a vereadora na cidade de Russas, a 160 km de Fortaleza, nas
eleições de 2012, mas não venceu o pleito.
Luma nasceu em 17 de agosto de 1977, em Morada Nova. Hoje mora na cidade de Russas.
Luma mora com o companheiro José Wellington de Oliveira Machado há quatro anos. Ele também é professor.
A
entrevistada trabalha como assessora técnica da Coordenadoria Regional
de Desenvolvimento da Educação (Crede), coordenando 26 escolas em três
cidades do Interior.
Luma é concursada pela Secretaria da Educação do Ceará (Seduc) como professora de Biologia, desde 1999.
Luma
diz ter maior reconhecimento fora do Ceará. O Ministério da Educação
(MEC) e a Universidade Federal da Bahia (UFBA), por exemplo, a
convidaram diversas vezes para que desse palestras sobre sua pesquisa.
NÚMEROS
2012
DOUTORADO
Foi o ano em que Luma Andrade tornou-se doutora pela UFC.
2010
MUDANÇA
Foi o ano em que Luma mudou o nome na Certidão de Nascimento.
PERFIL
Luma
Nogueira de Andrade nasceu no dia 17 de agosto de 1977 em Morada Nova,
a 161 km de Fortaleza. Filha de agricultores analfabetos, Luma nasceu
João Filho Nogueira de Andrade, mas em 8 de março de 2010, ganhou o
direito de mudar os documentos sem a cirurgia de mudança de sexo. Aos
18 anos, Luma passou no vestibular para o curso de Ciências Biológicas,
da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Em 1999, passou no concurso
para professora municipal de Morada Nova. Fez Mestrado em
Desenvolvimento e Meio Ambiente, na Universidade Estadual do Rio Grande
do Norte (UERN), em 2003. No mesmo ano, foi aprovada como professora
da rede estadual. Fez doutorado em Educação, na Universidade Federal do
Ceará (UFC), com a tese Travesti na Escola: Assujeitamento e/ou
Resistência à Ordem Normativa, defendido em 2012.
Pergunta do leitor
Tiago Coutinho, professor universitário
Você sentiu algum preconceito na academia durante o doutorado?
Luma
- Senti sim. Existiam alguns colegas que me recriminaram, acharam que a
pesquisa não tinha tanta relevância. Diziam que a Secretaria da
Educação estaria mais preocupada com outras questões mais objetivas.
Pessoas chegaram a criticar a pesquisa, dizendo que ela não traz
possibilidades de enfrentamento; que não me valoriza enquanto
pesquisadora. Também pelo fato de eu ser uma travesti falando de
travesti. A mídia teve papel primordial para
a pesquisa.
As pessoas xingavam, chacoteavam, espancavam. Ele, menino acuado, não
entendia as razões e os porquês. Olhava espantado e não enxergava
motivos. Aprendeu, então, que seu existir era incômodo. Sabia, sim, que
tinha de colocar resistências para ser ou estar. Ainda assim, carregava
uma culpa. Não sabia o motivo. Hoje, sabe: o ser diferente.
Luma
Andrade nasceu no corpo de João Filho e assim o foi na infância e
adolescência até aceitar-se e descobrir-se. No colégio, sentia-se
constrangida de usar o banheiro masculino. Com dor, continha vontades
até chegar a casa. A mãe não aceitava o desigual, mas respeitava. Do
pai, nem respeito recebia, sobrando hoje apenas indiferença.
Usava
o estudo como válvula de escape. Passar no vestibular, num município do
Interior e da primeira tentativa, foi a consequência e o que abriu as
portas para agora ser “ela”. Às aulas, ia como queria: vestidos, cabelos
longos, maquiagem. Não sem esforço, conquistou um concurso, um mestrado
e um doutorado. Fugindo completamente do estereótipo expansivo e de
gestos espalhafatosos, dado às travestis, Luma é toda delicadeza e
discrição. Qual barreira seria maior que o maior alcance da academia?
“Agora eu posso ser quem eu quiser”.
O POVO - Como você se percebeu diferente dos outros meninos
da escola?
da escola?
Luma Andrade
- Quando eu ia à escola, fui percebido como diferente dos demais por
conta de sempre me identificar com as meninas. Acabava tendo uma empatia
maior com elas. Alguns colegas não aceitavam. Achavam que eu tinha que
estar junto com eles e gostar das mesmas brincadeiras. Isso refletia em
muitos momentos de violência, em que eu era agredido simplesmente por
ter uma singularidade muito feminina. Eles não aceitavam.
O POVO - Você entendia, quando criança, o porquê disso?
Luma
- Não. Acredito que até eles (não entendiam). Praticavam o que viam os
adultos fazerem. Discriminar, falar mal, rejeitar e não atentar para
qualquer forma de diferença em relação aos papéis sexuais. Eles também
são vítimas de um processo de formação que é focado de pensamento
binário sexual: se você tem uma genitália masculina, tem que ter um
comportamento social para esse órgão; se tem uma genitália feminina, é
da mesma forma. É esse binarismo que, quando a gente nasce, somos
obrigados a compreender pela pedagogia da dor.
OP - Em que momento você passou a entender aquilo como ofensivo e preconceituoso?
Luma
- Com o passar do tempo, a gente vai vendo o diferencial. O que os
fazia me violentar física, verbal e psicologicamente? Era exatamente
porque eles me percebiam diferente. E isso foi me fez perceber: ‘estou
fazendo algo errado’. Esse ‘algo errado’ é porque não estou assumindo o
mesmo papel social que eles. É uma espécie de pedagogia violenta e tenta
justificar a violência em cima da diferença. Por não estar dentro dos
padrões.
OP - Você acha que os estudos eram uma válvula de escape?
Luma
- Com certeza. Ele foi a linha de fuga, como diz (Michel) Foucalt
(filósofo francês). Porque me centrei (nos estudos) para fugir da
questão da sexualidade. Eu estudava muito, ajudava colegas que tinham
dificuldades. Existem diversas formas de fugas da realidade. Algumas
pessoas preferem usar drogas, outras preferem canalizar a problemática
da vida para o trabalho ou para as religiões. Eu tinha tentando as
religiões e não deu certo. Continuei a canalizar para os estudos. Foi
onde vi que estava fazendo algo coerente. Só conquistei a liberdade
quando cheguei na faculdade (Luma cursou Ciências Biológicas, no campus
de Russas, da Universidade Estadual do Ceará - Uece).
OP - Você diz que sua mãe aceitava você ser travesti, mas não entendia. Pode explicar melhor?
Luma
- Quando é alguém da família, por mais que seja estranho, existe o
respeito. Ela me respeitava, mas não aceitava. É diferente você aceitar e
respeitar. Ela pode não aceitar, mas tem o dever, enquanto cidadã, de
me respeitar. Outra parte da sociedade é exatamente dura: não aceita nem
respeita. A violência e até o assassinato pessoas se justifica para que
as pessoas não sigam aquele caminho ou não tenham aquela singularidade.
É com ódio. Tanto, que se você perguntar para as pessoas que agem dessa
forma, elas vão dizer que isso se justifica. É aí onde está o perigo
dos discursos. Alguns discursos de religiosos fundamentalistas, em
escolas, feito por pessoas machistas e homofóbicas podem levar
adolescentes e crianças a entenderem que qualquer atitude para extirpar
do outro, essa singularidade que não é hegemônica, se justifica. Existe
uma pedagogia ensinando o tempo todo que isso (homossexualidade) não é
certo.
OP - Em que campos de atuação a travesti é mais aceita?
Luma
- Uma travesti professora é entendida para pais e professores como mal
exemplo. O principal da escola é a questão do desenvolvimento humano, da
formação do cidadão. Não é papel da escola tentar encaixar as pessoas
numa forma e padrão. Porque hoje a sociedade é diversa. O que tem de ser
extirpada da escola é a violência, e a não aceitação das diferenças. A
melhor forma de eliminar a discriminação é fazer o jovem aprender com as
diferenças. Na escola, você vai ter uma diversidade de cultura e
trabalhar para que as diferenças consigam conviver pacificamente. A
presença do homossexual é uma ‘ameaça’ porque vai, de certa forma,
abalar sua masculinidade. Existe na nossa sociedade esse ‘perigo’. Ele
não tem uma doença, mas é tratado como se tivesse. As pessoas precisam
entender que não há contaminação. A gente tem a mania de querer
padronizar as coisas. Uma vez, na sala de aula, um aluno perguntou:
‘como você se tornou homossexual?’. Eu respondi com outra pergunta:
‘como foi que você se tornou heterossexual?’. Não existe resposta.
OP - Você falou do recuo para um pequeno avanço. Na relação com o seu pai, você usou desse recuo?
Luma
- (pausa) Na verdade, a questão com meu pai vai muito mais além da não
aceitação em si, do não respeito dele à minha diferença. Vai agregar
outras questões que agregam o trato com minha mãe, minha irmã. O que nos
distanciou dele foi a sexualidade. Ele me colocou para fora de casa
porque não aceitava que eu levasse meu namorado para a casa onde eu
morava junto com minha irmã - e ele nem morava lá. Quando saí, consegui
comprar minha casa com muita dificuldade.
OP - Você já percebeu alguma aproximação das pessoas pelo fato de ter o doutorado?
Luma
- Teve uma vez, quando eu fazia a terceira série (do ensino
fundamental) que um colega chegou para minha professora na sala de aula,
comigo chorando, e ela disse: “Professora, o meu colega está chorando.
Machucaram ele”. E ela chegou bem perto da minha cadeira e disse: ‘Bem
feito, quem mandou você ser assim?’. Eu não sabia do que ela estava
falando, mas ela sabia. Estava dizendo que o que eu estava fazendo era
errado. Anos depois, recentemente, eu soube que ela fazia questão de
dizer que era minha professora. Fico feliz por ela estar orgulhosa por
eu ter chegado a onde eu cheguei. Mas isso não apaga o que aconteceu.
OP - A partir de que momento você passou a ter respeito consigo e a aceitar que era uma travesti?
Luma
- Comecei a aceitar porque fui vendo que era isso que me fazia feliz.
Quando assumi para mim mesma o que tinha vontade de ser foi o momento em
que assumi para a sociedade. Isso me fez entender que era esse o
caminho, de fazer com que as pessoas respeitassem a minha diferença.
Consegui esse respeito dentro do centro universitário e é bem mais
difícil. O fato de eu ter conseguido passar o vestibular da primeira vez
que eu fiz. A universidade é um empoderamento na sociedade.
OP - O que a universidade trouxe para você, além de toda a
teoria acadêmica?
teoria acadêmica?
Luma
- No primeiro momento na universidade, tentei ir todo masculinizado,
para me esconder. Quando eu entrei, os alunos começaram a me vaiar, a
gritar, a dizer nomes (palavrões). Eu pensei: ‘sabe d’uma coisa? Se é
desse jeito aqui também, então vou ser eu mesma’. Comecei a usar as
roupas que eu queria, bem femininas, a assumir o papel feminino dentro
da universidade também. E por incrível que pareça, quando fui assim,
passei a ser mais respeitada.
OP - O que representou a mudança no seu nome nos documentos de identificação?
Luma
- Sou a primeira travesti da região Nordeste a conseguir mudar os
documentos. Meu nome é feminino: Luma Nogueira de Andrade, não é mais o
nome de nascimento. São degraus. Ainda hoje acontece preconceito., mas
não como era antes.
OP - Você acredita que a
bancada evangélica representa uma espécie de prejuízo para o
desenvolvimento da igualdade e da pesquisa no País?
Luma
- Não quero dizer aqui que todos os evangélicos são pessoas fechadas,
tradicionais ou fundamentalistas. Mas, infelizmente, os representantes
que chegam ao parlamento e que fazem parte da igreja evangélica e, até
mesmo, da religião católica, são representantes de um movimento
tradicional fundamentalista. E para eles, o pensamento contemporâneo é
uma afronta à divindade. Tudo que foge ao padrão pré-estabelecido é
errado. Isso acaba promovendo um atraso para os direitos humanos, para a
ciência – quando não se permite a pesquisa científica com células
tronco. O tabu desse grupo em não aceitar outras culturas religiosas
como o candomblé, o espiritismo. Enquanto o Brasil não se abrir para as
diferenças sociais, não vamos conseguir um desenvolvimento com respeitos
aos direitos humanos.
OP - Um aspecto simples, mas importante, é a relação das travestis com banheiros públicos. Quando você conseguiu usar o feminino?
Luma
- Não era aceito que eu frequentasse banheiro feminino (da escola) e eu
nem me sentia bem nos banheiros masculinos. Cheguei ao ponto de conter
as necessidades fisiológicas. Tinha dias que era uma tortura. Às vezes,
fazia na roupa. Com o passar do tempo, fui ficando mais adolescente,
continuei sem frequentar. Às vezes, dava escapada e entrava no banheiro
dos professores, porque não tinha vigilância. Quando eu lecionava na
educação básica na rede estadual, continuei frequentando o banheiro
masculino. Aos poucos, ia deixando de lado, entrava escondida no
banheiro feminino, no horário que não tinha ninguém. Hoje, lá na Crede
(Coordenadoria Regional de Desenvolvimento da Educação, onde trabalha),
frequento o feminino.
OP - Você mudou o nome nos documentos. Conseguiu mudar o sexo também?
Luma
- A Justiça ainda tem essa dificuldade de reconhecer, porque, para
eles, o sexo é o órgão genital que determina. Ela segue as questões das
normas biológicas e da Medicina, que é o corpo que vai dizer quem você; é
e não a sua mente. Mas no caso do nome social, eles estão conseguindo
aceitar estudos da Sociologia. Tenho o sexo masculino, mas tenho um
gênero que é feminino. E é o gênero que determina o social, o que eu
quero. É o que a minha mente deseja e me faz feliz. A Justiça está dando
ainda pequenas aberturas. Temos muito a evoluir. Não penso em mudar de
sexo. Porque existe uma diferença conceitual, em certo ponto, entre
travesti e transexuais e as definições não dão conta da realidade. Eu me
identifico como travesti porque entendo travesti como a pessoa que é do
gênero feminino, mas convive bem com seu órgão masculino. Já a
transexual é do gênero feminino, mas tem órgão genital masculino e
deseja extirpar o órgão. Ele é um incômodo, faz mal, não é prazeroso. É
como se fosse um câncer. Não tenho desejo de extirpar meu órgão genital
porque ele é uma fonte de prazer. Essas cirurgias são muito dolorosas. A
pessoa passa por momentos de sofrimento. E mesmo que não fosse
doloroso, eu não faria.
OP - O tema da
sexualidade também norteou sua pesquisa no doutorado. Foi também uma
forma de estudar um tema tão pouco investigado?
Luma
- O tema do doutorado em Educação foi “As travestis na escola –
assujeitamento e resistência à ordem normativa”. Era um estudo sobre as
travestis nas escolas. Vivenciei todo esse sofrimento. De não poder
frequentar um banheiro adequado ao meu gênero, de ser espancada e
verbalmente maltratada. O doutorado é um instrumento do poder que
legitima sua fala. Entender que boa parte da evasão de travesti na
escola não é por interesse do próprio aluno. É uma consequência da
vivência que ele tem na escola. O abandono de uma travesti é ocasionado
por uma evasão involuntária. De certa forma, como fala Berenice
Weissheimer, uma das grandes pesquisadoras do assunto, isso é uma
expulsão. É uma evasão involuntária. E se perguntarem, na escola, porque
esses alunos abandonaram, vão dizer: ‘Ah, é porque são irresponsáveis,
não querem nada da vida’; ‘não têm capacidade de continuar na escola’.
OP - Existe algum fator novo que você percebeu na pesquisa?
Luma
- A questão do documento, da chamada, o nome social na escola. Através
da pesquisa, conseguimos chegar junto ao Conselho Estadual de Educação
do Estado para que as travestis fosse aceitas e tratadas pelo nome
social. Outro ponto a que chegamos foi a retirada da Carteira de
Reservista, o constrangimento que é retirá-la. Ela é do sexo masculino,
mas do gênero feminino. Ela é obrigada, para ser cidadã, ir contra os
próprios princípios. E a sociedade impõe isso à força. Não era nem
necessário ser pedida Carteira de Reservista para uma travesti porque
ela é do gênero feminino. Poucas vão ter coragem de passar por esse
processo. E como ela vai se integrar na sociedade, sem esse documento? É
uma cidadania institucionalmente negada.
OP - Você e seu companheiro pensam em adotar uma criança?
Luma – A gente pensa, no futuro.
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