segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Dia em que Sol foi vaiado completa 70 anos

Cena icônica do "Ceará Moleque", o dia em que os transeuntes da Praça do Ferreira vaiaram o sol faz hoje 70 anos
O sol venceu. Saltou sobre as espessas nuvens de chuva que embelezavam aquela manhã de sexta-feira, cinza e lenta, em 30 de janeiro de 1942, e fuzilou seus raios sobre a superfície encharcada de Fortaleza. Em desvantagem, os soldados da Praça do Ferreira, quartel general das mais afiadas mentes da época, reagiram tão logo a ameaça do primeiro raio. De pronto, entoaram uma vaia tão alucinante que foi parar nas páginas do jornal do dia e nos autos de nossa historiografia.

O "ieiii" polifônico, em massa, que deve ter-se ouvido na ocasião, se não tangeu novamente o astro-rei para detrás das nuvens, entrou para a história de Fortaleza como símbolo de um traço peculiar da cultura cearense: a molecagem.

Nas palavras do Bandido da Luz Vermelha, em filme do cineasta Rogério Sganzerla, "Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha". O sentido era outro, mas se aplica exatamente à ocasião. "O Ceará Moleque, que na época era muito criticado pela elite, me pareceu uma forma de resistência de diversas pessoas àqueles processos todos de mudanças que ocorriam na Cidade", contextualiza o historiador e professor da Universidade Federal do Ceará, Sebastião Ponte, autor do livro Fortaleza Bella Époque (1860 - 1930). Na quarta edição do livro, ele inclui a cena da vaia ao sol como um reflexo um comportamento debochado aflorado, que na época foi tarjado de Ceará Moleque.
"Em 1983, o Adolfo Caminha com raiva da cidade escreveu ´A Normalista´, que arrasa com a hipocrisia de parte da sociedade. Uma personagem reclama que o nome saiu em um dos jornaizinhos debochados da época e a outra responde: ´Ah, você não sabe que é a terra do Ceará Moleque´", cita Sebastião, sobre uma das referências ao tema na literatura, que conta ainda com uma série de periódicos com nomes como "O Moleque" e mesmo a revista "O Ceará Moleque".

Em seu estudo, o historiador identifica essa irreverência como uma forma de crítica que era comum tanto às camadas mais empobrecidas como aos intelectuais de classe média, os jovens escritores da Padaria Espiritual, por exemplo. A elite do início do século, explica, impunha uma série de mudanças à Fortaleza, com novos costumes pautados pelo modelo francês, construção de passeios e praças com espaços segregados (à exemplo das avenidas do Passeio Público), além de ações de higienização e vacinação.

"Não era apenas uma brincadeira. A vaia é algo mais forte. É uma reação à altura daquilo que estava acontecendo", defende.

A gaiatice, o escárnio era algo que fazia parte da cultura dos frequentadores da Praça do Ferreira. Sebastião enumera alguns das personificações desse espírito, que tiravam a cidade da normalidade quando apareciam, como o Casaca de Urubu, sujeito pobre e muito alto que vestia preto; o Chagas dos Carneiros, pedinte cego e defensor da monarquia, que andava com três carneiros pintados de cores diferentes e batizados com nomes de presidentes da república; e o Bode Ioiô. "Se vaiaram até o sol, não devemos nos surpreender que vaiassem pessoas das elites, das classes dominantes", reforça.

Reverberação
Paulatinamente, o episódio da vaia ao sol vem ganhando espaço e assumindo a dimensão de símbolo dessa identidade avacalhada. É reclamado por humoristas como um "talento" natural do cearense para a comédia; narrada em cordel (vide coordenada), livros de memorialistas, de historiadores, retratada em tela, na música e no teatro.

"Mesmo levando em conta que era um grupo pequeno de pessoas, não era manifestação massiva, é muito representativo. Mostra uma postura que a gente tem de levar as coisas no deboche, de não se levar a sério. Vejo como importante para compor a psicologia social do cearense", argumenta o professor, escritor e pesquisador Gilmar de Carvalho.

Ele é autor de um esquete teatral que fez parte do espetáculo "Made in Ceará" cujo pano de fundo é a cena da vaia. "Alguém tinha me contado sobre esse evento. Em 1976 não havia muito alarido em torno desse dia. Isso passou a ser veiculado mais recentemente reivindicado muito pelos humoristas", lembra Gilmar. A confirmação sobre a veracidade da vaia, ele disse só ter tido mais recentemente, quando lhe chegou às mãos uma cópia do jornal da época que narrava o fato.

Dispondo apenas de informações vagas e de tom anedótico, Gilmar conta que buscou inserir a cena em um contexto mais amplo, narrando de forma irônica a tentativa de um carnavalesco de escrever um samba-enredo sobre a molecagem cearense, caindo no questionamento da real existência desse traço comportamental.

Nessa tentativa, ele reúne os casos emblemáticos dessa molecagem, passando pela Padaria Espiritual e pelas moças "coca-colas" (alcunha dada às mulheres que namoravam americanos na época da Segunda Guerra). "Vou tentando defender essa tese de que a molecagem pode ser comprovada historicamente. À partir daí, o sambista vai vendo que apesar de nem ter motivo para ser tao irreverente, o cearense recorre a ela para superar as dificuldades. A peça culmina com a vaia ao sol", conta.

"(Na época) achava que tinha sido lenda urbana. Não acreditava que tinha acontecido; Fiz como se trata os mitos, o fato de ter ou não acontecido não era importante", lembra. O espetáculo foi encenado no Teatro do Ibeu em 1976 pelo Grupo Balaio, sob direção de Marcelo Costa.

FIQUE POR DENTRO

O registro da estripulia

A história popularmente contada sobre o dia em que o sol foi vaiado na Praça do Ferreira, na sexta-feira, dia 30 de janeiro de 1942, dá conta que Fortaleza estava há três dias sem sol, escondido atrás de nuvens de chuva. Conhecendo-se o clima local, pode-se supor que o tempo sem sol é exagerado, mas o fato da vaia em si foi registrado na edição do dia do jornal O Povo, presenciado por um repórter que se dirigia ao trabalho.

"Um grupo numeroso de pessoas, logo depois de passada a chuva, se aglomerava em certo trecho de rua, usualmente bem movimentado. Quando o sol, tão bravo nestes últimos dias, ia conseguindo varar as grossas nuvens, lá no alto, num esforço desesperado para aparecer, os alegres circunstantes, olhando para o alto e apontando, começaram uma demonstração estrondosa, vaiando o astro vencido e apagado, naquele momento, num grito uníssono de várias bocas. Mas afinal o velho Rei das alturas venceu, botando todo o corpo para fora das nuvens e dispersando os vaiadores", escreveu o jornalista.

De acordo com o historiador Sebastião Ponte, o fato deve ter ocorrido pela manhã, visto que foi publicado no mesmo dia. Na época, o jornal era impresso no período da tarde. A data é também mencionada por memorialistas como Herman Lima, no livro "Imagens do Ceará", publicado em 1977 pela editora Henriqueta Galeno.

Vaias e piadas na Praça do Ferreira
Divulgadores de feitos do Ceará Moleque - como atestado do "talento" que o cearense teria naturalmente para o humor - um grupo de artistas vai hoje, no fim da tarde, à Praça do Ferreira celebrar os 70 anos da vaia histórica ao sol e puxar novamente os gritos de zombaria ao astro-rei. A agitação deve começar por volta das 16h e contará com um pequeno palco, aberto ao público, convidando a quem queira se atrever a contar causos e piadas.

"[A programação] é no sentido de não deixar a data passar em branco. É um dos símbolos da nossa molecagem e queremos que as pessoas tomem conhecimento disso!", explica o presidente da Associação dos Humoristas Cearenses (Asso - H), Jader Soares, conhecido por seu personagem Zebrinha.

A ideia, explica, é chamar todos que estiverem na Praça do Ferreira para vaiar novamente o sol e seguir entre vaias e contações de piadas até que o sol desapareça. "E se chover, a gente vaia a chuva também", brinca.

Concurso
O grupo confeccionou um troféu que será entregue ao cidadão que puxar a vaia mais gaiata. Um concurso para eleição está programado entre as atividades de hoje. "Vou eu, o Zebrinha, Motoca (Carlos Mariano), Veia Cômica (Ernesto Martins), Tom Leite (Antonio Jocelio), Super Edson (Edson Cardoso) e Élvis Preto (Edvaldo Cardoso)", enumera Jader, sobre as presenças já confirmadas.

Um cordel escrito por Jader Soares narrando a história da vaia ao sol também será lançado. "Para o Humor do Ceará, o dia 30 de janeiro é uma data da maior importância e que tem uma simbologia pra lá de irreverente. É coisa de cearense. Coisa que só acontece aqui", destaca Jader Soares.

FÁBIO MARQUESREPÓRTER

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