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Ator João Miguel, atriz Marcélia Cartaxo e diretor Allan Deberton nas filmagens de "Pacarrete", longa de Allan Deberton (Russas) (Foto: Luiz Alves / divulgação) |
Por Bruna Forte-O Povo
Maria Araújo Lima nasceu em Russas, a 165 km de Fortaleza, nos idos de 1912. Corpo afeito ao movimento, a cearense gozou seus 92 anos de vida como uma enfant terrible: abusou das cores e formas em suas vestimentas, tinha o ar afrancesado de quem já aportou em muitos destinos e sonhava ser bailarina profissional e abrir uma escola de dança no interior. Pacarrete (do francês "pâquerette", "margarida"), como ficou conhecida a figura vanguardista, bordou-se no imaginário do cineasta e realizador audiovisual Allan Deberton desde a infância dele. Sua trajetória de resistência é retratada no longa-metragem Pacarrete (2019), filme recém-selecionado para o Festival Internacional de Cinema de Xangai. Dentre 3.964 filmes inscritos de 112 países, a produção cearense entrou na lista de 15 longas de ficção que concorrem ao grande prêmio do festival, o Golden Goblet Award. O evento acontece entre 15 e 24 de junho na China.
Dirigido por Allan Deberton, Pacarrete foi roteirizado em parceria com os também realizadores André Araújo, Samuel Brasileiro e Natália Maia. Primeiro longa de Allan — premiado por curtas como Doce de Coco e O Melhor Amigo —, o filme está maturando há cerca de 10 anos. "Quando eu era criança, indo e voltando da escola, percebia quando apontavam na rua para uma senhora com roupas diferentes, um tanto exageradas, que gritava e parecia reclamar alguma injustiça. Lembro desta senhora que julgavam como louca, mas que adorava música clássica, era muito inteligente e adorava conversar. Soube que cantava, que era bailarina clássica e militante da cultura. Era disso que ela reclamava: a cultura que parecia não chegar no interior", relembra Allan. Em 2007, no início da faculdade de Cinema em Niterói (RJ), o conterrâneo de Pacarrete começou a pesquisa que resultou no longa a ser lançado em Xangai.
A premiada atriz paraibana Marcélia Cartaxo (A Hora da Estrela) interpreta Pacarrete na obra. "É um projeto antigo movido a afetos. Quando fiz meu primeiro curta, Doce de Coco (2010), estando a Marcélia Cartaxo em Russas, gravando comigo, falei para ela sobre a Pacarrete e perguntei se ela faria a personagem. Sonhamos com isso juntos desde então", compartilha o diretor. Para viver a personagem que dança na ponta dos pés, Marcélia preparou-se ao longo de cinco meses. "Começamos a filmar o longa em Fortaleza e depois seguimos para Russas, onde foi filmado 95% do filme. Rodamos durante quatro semanas com uma equipe envolvida de quase 100 pessoas. Pacarrete ficou pronto no início de maio", continua o diretor.
Sobre a seleção para o prestigiado Festival Internacional de Cinema de Xangai, um dos maiores da Ásia, Allan demonstra compromisso com a cena cearense. "O Festival de Xangai é um dos mais importantes do mundo e um dos poucos credenciados Classe A pela FIAPF (Federação Internacional de Associações de Produtores Cinematográficos), a mesma entidade que supervisiona e atesta a qualidade de festivais como Cannes, Berlin, Veneza, San Sebastian, entre outros. Para o Ceará, imagino que isto representa orgulho e realização. Junto com outras produções de cinema produzidos no estado, como Infernino, de Guto Parente e Pedro Diógenes, Greta, de Amando Praça, e Soldados da Borracha, de Wolney Oliveira, só para citar os mais recentes, que foram lançados em grandes festivais, a seleção de Pacarrete representa a excelente fase de nosso cinema, maduro e diverso — e universal — pois nossas histórias estão conseguindo chegar longe. Nosso cinema está pulsando forte ao descompasso que caem os investimentos da cultura no Brasil e no Ceará", acredita. O juri do festival conta com renomadas personalidades, como o diretor italiano Paolo Genovese e a atriz chinesa Zhao Tao.
"Eu sabia que Pacarrete seria meu primeiro longa, pois era a minha grande motivação como cineasta. Queria pôr na tela uma história importante pra mim, sobre a verdade da minha cidade — e a minha própria, como pessoa. É tão difícil fazer cinema que a gente precisa amar o projeto, lutar por ele. Ao mesmo tempo, eu queria me sentir melhor preparado, maduro, queria fazer o filme quando tivesse realmente competência para tal, no sentido de dar o melhor de mim pra contar esta história. E deixei o tempo passar, fazendo curtas, maturando esta ideia, estudando. Uma vez tive medo do filme não acontecer e desta história não ser contada. Tive medo de Pacarrete ser esquecida... Foi então que juntamos uma grande equipe, o que me deixou muito feliz em todo o processo — obrigado pela confiança — e fizemos o filme, tornamos ele possível. Acho que as pessoas se modificaram como eu me modifiquei. Continuo querendo contar histórias sobre resistência humana, sobre insatisfações, sobre mover-se. Espero que a plateia se modifique também", finaliza o diretor.
Além de Pacarrete, outro filme brasileiro compete ao Golden Goblet Awards — é o longa-metragem gaúcho RAIA 4 (2019), do realizador Emiliano Cunha.