ATRIZ Marcélia Cartaxo nas filmagens de Pacarrete, longa de Allan Deberton Luiz Alves / divulgação |
TAÍS BARROS BEZERRA-
o povo
Tal qual um set de cinema que é tomado por um burburinho para acertar os últimos detalhes de uma cena antes do "gravando!", a cidade de Russas - distante 165 quilômetros de Fortaleza - também foi tomada por um rebuliço quando foi percebendo uma movimentação anormal no local. Os habituais caminhos que guiavam os cidadãos russanos em seus afazeres diários estavam fechados e os itinerários tiveram de ser recalculados por conta das gravações do filme Pacarrete, primeiro longa do diretor Allan Deberton, natural da Cidade. O roteiro da obra foi escrito por ele, André Araújo, Samuel Brasileiro e Natália Maia
O trabalho conta a história de Maria Araújo Lima, conhecida por todos em Russas pela alcunha de Pacarrete. A mulher que inspirou a personagem é real e o próprio diretor conta que conviveu com ela em sua adolescência. "A Pacarrete é uma figura 'folclórica' de lá. A primeira lembrança que eu tenho é quando me foi apresentado que ela era uma louca. Quando eu voltava da escola de bicicleta, a via na pracinha gritando e fazendo confusão", lembra. O diretor, inclusive, passou anos achando que "pacarrete" era sinônimo de "louco". Foi apenas nas primeiras férias da faculdade de cinema, quando voltou a Russas, que um amigo o fez mudar a visão que tinha sobre Maria. "Ele me sugeriu fazer um filme sobre a Pacarrete e eu disse: 'sobre a louca?'. Então, ele me explicou a história dela".
Pacarrete - apelido que vem do francês pâquerette, "margarida", e atribuído a ela após interpretar uma personagem com esse nome em uma peça teatral - nasceu em Russas em 1912, onde faleceu em 2004, aos 92 anos. Ainda bem jovem, foi morar em Fortaleza. Na capital, se tornou bailarina e professora, dando aula em várias escolas nobres de Fortaleza, desenvolveu amizades com personalidades artísticas e passou a dominar diversos tipos de artes. No entanto, a mulher que se vestia com formas e cores diferentes, de maneira bastante sofisticada e ostentava ares que a faziam parecer além de seu tempo teve que retornar à cidade natal para cuidar da irmã. De repente, se viu em uma sociedade que não compreendia seu jeito de ser, muito menos as aspirações artísticas que tinha para o local.
Ao andar pela cidade e conversar com moradores contemporâneos à Pacarrete, é possível ouvir relatos que dizem que a figura excêntrica era cheia de vida, bastante culta e costumava usar roupas chamativas. No entanto, nos últimos anos de vida, assolada por sofrimentos pessoais e por pessoas que costumavam importuná-la, já não tinha paciência, brigava com muitos e chegava até a jogar baldes d'água nos passantes. Allan a descreve como "uma pessoa muito ativa e ao mesmo tempo muito polêmica, que tinha um temperamento forte, mas também era muito doce. Uma pessoa de muitos contrastes".
As principais locações das filmagens se concentraram próximas à Praça da Matriz, coração da cidade de Russas. A casa destinada a representar a morada de Pacarrete fica ao lado da praça e, logo do outro lado, se encontra o Bar do Miguel, personagem interpretado pelo baiano João Miguel, ator de filmes como Estômago, Xingu e da série da Netflix 3%. Na terceira ponta do triângulo, está o apartamento que abriga o camarim destinado à transformação dos atores.
A premiada atriz paraibana Marcélia Cartaxo - de A Hora da Estrela, de Suzana Amaral - dá vida à Pacarrete. Para compor a personagem, Marcélia, que conta nunca ter feito tantas preparações para atuar, teve aulas de ballet, francês, piano e canto. Ainda no camarim, após duas horas de transformação e dando os últimos retoques, ela começa a usar a voz que criou para a personagem. De vestido colorido, sapatos de salto, chapéu e maquiagem forte, Marcélia deixa o camarim pronta para gravar uma cena solo. A atriz atravessa a rua e chega à casa de Pacarrete.
Em conversa com a reportagem, a atriz afirma que enxerga a personagem como uma artista incompreendida. "O que chama a atenção nela é o jeito excêntrico de ser. Dizem que ela era uma mulher muito educada, fina, mas ao mesmo tempo direta, que dizia o que queria", complementa. A equipe se prepara, faz os últimos ajustes e começa a gravação. O silêncio que toma conta da cena em questão é interrompido pelo marketing tão comum às cidades de interior: o carro de som. "Corta!". Passado esse momento, Marcélia se prepara para mais um take.
Outro olhar para Pacarrete
Em um contexto de cidade do interior do Ceará, onde manifestações culturais são, por vezes, tímidas, e o que vai na contramão do tradicional é tido como estranho, o longa de Allan Deberton se propõe a fazer uma releitura do que Pacarrete representou para Russas. A intenção, como explica o cineasta, é mostrar uma mulher forte que, ao mesmo tempo, se vê reprimida pela sociedade em que vive e acaba ficando perdida. "Pacarrete tem esse interesse pela arte, pela educação, pelas gentilezas e pelos convívios. Acho que ela tinha expectativas que não foram cumpridas e que, quando retorna a Russas, tem uma quebra da rotina, das coisas que ela aspira continuar fazendo e não consegue por uma série de fatores. De repente, ela se sente diminuída por estar lutando contra a Cidade para tentar manter isso, que é a filosofia dela", justifica Allan.
A atriz Zezita Matos, que interpreta Chiquinha, a irmã que motiva o retorno da protagonista à Russas, aposta que o filme fará com que as pessoas tenham uma leitura diferente sobre Pacarrete. "Todo mundo agora já começa a vê-la com outro olhar. Acho que é um legado com o qual nós vamos contribuir. É importante para a minha contribuição ao cinema trazer pessoas que eram execradas, consideradas loucas, mostrando esse outro lado. Era diferente, sim, e daí?", defende.
O personagem de João Miguel, inspirado em uma pessoa que realmente conviveu com Pacarrete, é visto pela ator como um amigo e cúmplice que a permite ser quem é. "É muito comum a gente catalogar os outros e apontar o dedo, não querer olhar além dos outros que têm dentro do outro. Porque nós somos muitos, a gente não é uma coisa só. O que acontece é que a gente não permite que esses muitos existam", considera.
Além de Marcélia Cartaxo, Zezita Matos e João Miguel, Pacarrete conta no elenco com Soia Lira, Samya de Lavor, Débora Ingrid, Ednéia Tutti, Rodger Rogério e atores da própria cidade de Russas.
Marcélia foi convidada para interpretar Pacarrete há dez anos, quando trabalhou com Allan no curta Doce de Coco e o longa ainda era apenas um sonho do diretor. No referido curta, ele também já havia trabalhado com Débora e Soia. A presença de Zezita completa o trio de atrizes paraibanas, formado por ela, Marcélia e Soia, que se conhece há anos e demonstra felicidade em poder participar conjuntamente da obra.
A escalação de João Miguel, ator consagrado do cinema brasileiro, vem porque Allan viu nele o homem com o "olhar feminino" que era necessário para interpretar Miguel. O ator baiano afirma que não pensou duas vezes quando foi chamado para participar do longa. "Eu acho que contracenar com essas três atrizes é muito precioso, porque são muito particulares e especiais em suas trajetórias. Quando o Allan falou de Miguel e também de quem seriam a Pacarrete, Maria e Chiquinha, eu pensei: não quero perder isso, porque a vida é curta", destaca.
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