O bode Ioiô: figura da cultura sertaneja numa Fortaleza que se queria "chique" ( Foto: José Leomar ) |
por Roberta Souza - Diário do Nordeste
A mesma Escola de Samba que em 2018 levou um Michel Temer vestido de vampiro para a Avenida, um ala de "manifestoches", ironizando os batedores de panela contrários ao governo de Dilma Rousseff e outra com "guerreiros da CLT" explorando a sobrecarga de trabalhadores, voltará a falar de política no carnaval de 2019.
Dessa vez, a Paraíso do Tuiuti vai fazer o povo pensar sobre a importância do voto, e o gancho é um personagem cearense bastante conhecido, residente em Fortaleza no século passado: o Bode Ioiô, que em 1922 teria sido eleito vereador, numa forma de protesto popular.
O anúncio do tema foi feito pelo carnavalesco Jack Vasconcelos durante a festa de aniversário da Escola, no último dia 6 de abril, quando o Grêmio Recreativo criado pelos moradores do morro do Tuiuti e adjacências, em São Cristóvão, completou 64 anos.
"Sei que a gente não é incentivado a fazer isso. A gente é incentivado a não gostar e a não falar de política pra não se aborrecer ou para não discutir, por diversas razões, mas o bode Ioiô vai nos dar essa mensagem, pra gente votar com consciência e com qualidade", discursou Jack na ocasião. O personagem foi apresentado ao carnavalesco há dois anos pelo historiador cearense João Gustavo Melo, por muito tempo atuante no departamento cultural da Salgueiro.
É que em 2016, a Tuiuti desfilou na Sapucaí com um samba-enredo que lembrava outro animal da história do cearense: o boi mansinho - que, doado pelo Padre Cícero ao Beato José Lourenço, logo ganhou o status de santo. A apresentação rendeu o primeiro lugar da escola no Grupo A, garantindo o acesso para o Grupo Especial.
"Logo que o João me falou, fui saber mais sobre o bode, me encantei com a história e tudo que ela representa. Mas guardei, porque acredito que os temas têm uma hora certa para aparecer, estar na rua. Ideias bacanas têm aos montes, mas fazer a ideia bacana ser vista, consumida com interesse é uma sensibilidade do artista", contextualiza Jack.
"Como a gente vem de um projeto que falava bastante sobre posicionamento, pensei: poxa! Tá na hora do bode dar o ar da graça pela Sapucaí, numa continuação natural do conceito desse ano", defende, em referência ao enredo "Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?", que deu o título de vice-campeã do Carnaval carioca 2018 à Escola.
Memória
Em exposição no Museu do Ceará, para onde foi doado e empalhado logo após a sua morte, em 1931, Ioiô é uma figura importante no imaginário do cearense. "Chegado à capital pelas mãos de flagelados da seca de 1915 - aquela eternizada por Rachel de Queiroz -, o personagem fora comprado provavelmente por caridade pelo dono de uma das muitas firmas de importação e exportação que se espalhavam pela capital cearense que pretendia ares de modernidade naquele início de século", conta a diretora do Museu do Ceará, Carla Vieira.
"E foi justamente pelas ruas dessa Fortaleza que se desejava chic que o bode, símbolo de uma cultura sertaneja que se queria suplantar, ganhou fama, em suas idas e vindas diárias da Praia do Peixe ao Centro da cidade. E é daí que se acredita vir seu famoso nome, Bode Ioiô", continua.
O escritor Juarez Leitão, por sua vez, lembra que os boêmios da época associavam o animal à reencarnação do seresteiro Paulo Laranjeira, e acabavam dando-lhe cachaça. Esta história ele conta tanto no seu livro "Sábado: Estação de viver", sobre a boemia cearense, como no documentário "Fortaleza, meu amor", dirigido por Pedro Carlos Álvares.
Sobre a eleição de Ioiô para vereador da cidade, no ano de 1922, Juarez chama atenção para um detalhe: "Na verdade, ele não foi eleito, porque não era nem registrado candidato, mas os votos que a população deu para ele nas cédulas de papel foram uma maneira de protestar contra o governo da época", defende.
Processo
O carnavalesco Jack Vasconcelos vê a história como o gancho perfeito para o tema da Paraíso do Tuiuti em 2019. "O grande por quê do bode ser abordado é justamente essa questão das pessoas pensarem na qualidade do seu voto. O Ioiô foi um grande voto de protesto, um grito da população perante aquilo que não concordava", explica.
"E não é muito diferente do que estamos passando nesse momento, né? É pertinente abordar algo dos anos 20 do outro século e que ainda é tão presente, porque estamos num período de contestação do comportamento dos governantes. E está na nossa mão consertar esse tipo de coisa, que bom que ainda está".
Visita
No momento, Jack está realizando pesquisas em parceria com o colega João Gustavo e uma amiga de Fortaleza. Ainda em abril ele virá ao Ceará para passar alguns dias e se situar sobre as memórias do bode que vai sair na Sapucaí em 2019. Somente no dia 13 de maio o público conhecerá a sinopse do enredo da Paraíso do Tuiuti, e ainda virá muito trabalho pela frente.
"Nem posso te dizer que o Carnaval 2018 passou. Estamos mantendo o calendário tradicional, divulgando o novo enredo, mas ainda há toda uma agenda em cima do Carnaval passado. Foi muito bacana, temos o maior orgulho, uma delícia de repercussão. Fui xingado pra caramba, mas não tem problema, o papel do artista é esse mesmo, trazer questões para as pessoas discutirem", conta Jack.
"Mas a gente precisa andar, dar um passo para a frente, e o bode é perfeito para isso, porque a gente continua numa linha coerente dos trabalhos feitos nos últimos anos e continua com nosso discurso pro povo, pra massa geral, bem fresquinho", reflete.
Além da satisfação em trazer à tona mais uma história pouco conhecida do Nordeste Brasil afora, o carnavalesco comemora as fronteiras ultrapassadas pela Paraíso do Tuiuti. "É sempre bom quando uma escola de samba consegue atingir outros nichos que não só o seu, a sua bolha. A gente conseguiu romper muitas fronteiras com esse Carnaval. Queremos continuar a contribuir com isso", diz.
"Com um enredo de ironia e humor, vamos falar de algo muito sério. As pessoas ficam desarmadas, dão logo sorriso quando sabe que é sobre o bode. Vamos aproveitar o sorriso e falar pra elas não tratarem aquela máquina e aquele botão (da urna) como uma obrigação ruim. Ir com carinho no ato de votar. Vamos ficar felizes pra caramba se conseguirmos isso. Seria uma revolução", aposta, pronto para mais um desfile histórico.
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