sábado, 8 de julho de 2017

Quinze anos sem Patativa do Assaré

por Gilmar de Carvalho* - Especial para o Caderno 3
A notícia da morte do Patativa, a 8 de julho de 2002, causou comoção. O desfecho sempre traz a face crua de uma realidade que muitas vezes insistimos em mascarar.

Patativa se foi aos 93 anos. Manteve a lucidez até a agonia. Manteve também o bom humor e a capacidade de improvisar. Não duvide que tenha saudado sua chegada ao céu com um rompante capaz de provocar o riso de São Pedro, representado nas imagens carregando as chaves, o seu atributo.
Quinze anos depois, pode ser um bom momento de rememorar o que ele fez e de chorar a falta que ele faz. Também de avaliar o que aconteceu depois dele e o que ele diria ou faria em determinadas situações.

As visitas

Não existem mais visitas à casa do número 27, da Rua Coronel Onofre, ao lado da Praça da Matriz de Assaré. Agora, quem quiser "visitá-lo", vai ao outro lado da rua, onde fica o Memorial, inaugurado nas comemorações dos seus 90 anos, em 1999.

As visitas eram sempre recebidas com versos improvisados. Chegavam autoridades, empresários, a mídia, crianças de escolas públicas e agricultores, seu público alvo preferencial, os receptores de seus poemas.

Todos eram saudados com a mesma alegria. Alguns, mais espertos e menos éticos, gravavam os versos para serem usados depois em campanhas políticas. Patativa sabia do truque e não deixava de externar sua alegria de anfitrião por conta da falta do pedido de autorização para usar estes versos. Ele estava acima destas "ganhações".

O café estava sempre na garrafa e era renovado várias vezes ao dia. A cadeira de balanço, modelo austríaco com palhinha, era a preferida para receber seu corpo cansado de tantos rapapés e de tantos cumprimentos.

Instalava-se na casa um tom de sarau. Muitos riam das quadrinhas espontâneas, do convite para se sentar, das conversas que rolavam e das fotografias que eram feitas, isso ainda bem antes da popularização das câmeras dos telefones celulares, ainda uns tijolões até 2002.

Às vezes, um livro era vendido, e os autógrafos eram indispensáveis. Patativa mantinha o bom humor, apesar da algazarra, do calor e da impertinência de alguns visitantes. A porta sempre aberta era a marca registrada de sua hospitalidade.

A Serra de Santana

Toda semana, religiosamente, Patativa fretava um carro e subia a Serra de Santana, onde nasceu e mantinha sua propriedade, tocada pelos filhos, netos e genros.

A Serra era um local idílico, cantada em vários de seus poemas, onde se sentia bem, em contato ainda mais íntimo com a natureza, na rede armada na casa da filha Inês, onde recebia os conterrâneos para o "beija-mão" e para se inteirar das novidades do lugar.

Depois do almoço e do indefectível café, seguido do cigarro que insistiu em não largar até a morte, Patativa mandava chamar seu primo Geraldo Gonçalves para brincar de poesia. O torneio verbal se prolongava pela tarde inteira e era curioso vê-los improvisar em torno de uma mesa.

Geraldo portava uma cadernetinha, fazia anotações e pensava, enquanto Patativa dava o mote que seria desenvolvido pelos dois. Patativa era paciente, sabia que ninguém tinha sua desenvoltura e esperava que Geraldo anotasse, rascunhasse a quadra, e então ele dizia a sua, sem precisar do suporte da escrita, com a poesia sendo pura voz.

Depois, seria a vez de inverterem as posições. Geraldo dava o mote que Patativa "tirava de letra", provocando risos dos presentes e evidenciando sua capacidade de fazer da poesia um jogo, um desafio e um jeito criativo de fazer passar o tempo, até a hora de voltar para a casa da cidade.

Cuidadoso, Geraldo também anotava as quadras de Patativa e este material foi impresso no livro "Ao pé da mesa", da editora Terceira Margem, de São Paulo (2002), pelo então secretário de Cultura do Estado, Nilton Almeida.

Este jogo poético não existe mais. Eles tratavam de temas, do mítico ao cotidiano, fazendo uma crônica poética da vida, ao mostrar que a matéria da poesia pode ser banal, desde que enunciada por vozes ágeis e afeitas a este cantar.

A voz e a terra

Patativa emudeceu, aparentemente. Os poetas da Serra de Santana continuam a versejar. Talvez não tenham o mesmo estímulo de antes, mas a chamada "fonte patativana", como ele se referia à influência que exercia e a capacidade de produzir poesia de qualidade será sempre mantida. Esta fonte vem de camadas geológicas bem profundas e chega à superfície em veios de água cristalina.

Sua poesia arraigou-se de tal modo àquela gente que é impossível reduzir a importância deste legado. Ao chegarmos à Serra, é inevitável que olhemos para os galhos das árvores na procura de vermos "o verso se bulir", como no cantar do Patativa.

Ao vermos aquele chão partilhado, temos a nítida certeza da importância de uma reforma agrária. A consciência daquele povo vem da importância de terem um pedaço de chão, e de não precisarem se submeter aos regimes feudais que ainda vigoram. Quando Patativa dizia que "a terra é naturá", chamava a atenção para a importância de cada qual ter o seu pedaço de chão.

Hoje, em tempos dos orgânicos e da valorização da agricultura familiar, o pequeno pedaço de chão nos leva ao plantar associado, a combater as pragas de modo natural, a resistir às secas por meio de estratégias como as mandalas, os gotejamentos e os aspersores. O chamado agronegócio não tão forte aqui, pela pobreza do solo, pela intermitência das chuvas, e pela escassez da água, que não tornam nossas terras tão sedutoras à cultura da soja e ao cultivo dos pastos para os grandes rebanhos.

Patativa é um ótimo exemplo de quem falou da terra como o agricultor que foi até se aposentar, aos 70 anos. A terra para ele era uma extensão de seu corpo e uma realização de suas metas. Ele se baseava em sua experiência de vida, ainda que devamos considerá-lo como um "intelectual orgânico", de acordo com o teórico marxista italiano Antonio Gramsci.

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