segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Dois sucos e a conta com Wal Schneider

Wal Schneider: "O teatro me tornou visível, quero que a voz desses meninos também chegue ao mundo" Foto: Mauro Ventura / O GLOBO
Wal Schneider: "O teatro me tornou visível, quero que a voz desses meninos também chegue ao mundo" - Mauro Ventura / O GLOBO

Desde pequeno, José Valdemir da Silva Gomes tinha certeza de que sua vida não se limitaria à pequena Tabuleiro do Norte, no interior do Ceará. Tanto fez que, aos 17 anos, veio para o Rio. Aqui se tornou Wal Schneider e criou a ONG No Palco da Vida, que tem fãs e apoiadores como Malu Mader e Maristela Velloso, diretora de produção da Globo. Ela atende 40 alunos, de 8 a 76 anos, com oficinas de teatro, dança, música, cinema e literatura. É gente de Olaria, Vila Cruzeiro, Maré, Complexo do Alemão, Bonsucesso, Caxias. Ao longo do projeto, que faz dez anos em 2017, já passaram 1.600 pessoas. “Já tive aluno de 82 anos”, diz ele, que se formou como ator e fez pós em direção teatral na CAL. A ONG abriu inscrições <nopalcodavida.com.br> para as novas turmas, que começam em fevereiro. Nos próximos dois fins de semana, Wal apresenta na sede do projeto (o Centro Cultural Chica Xavier, em Olaria) o novo espetáculo, “Memórias de nossa infância”, que conta a história de um grupo de nordestinos que chega ao Rio em busca de sonhos. A peça une Lorca, Cora Coralina, Manoel de Barros, Clarice, Cazuza, Gonzaguinha, Elza Soares. O ingresso (alimentos ou brinquedos) vai para a Casa de Apoio aos Hemofílicos de Olaria.


REVISTA O GLOBO: Como era sua vida no Ceará?

WAL SCHNEIDER: Éramos muito pobres. Catávamos lata, vidro e osso de vaca no lixo. Andávamos quatro quilômetros para pegar água. Quando chovia, havia o ritual de abraçar a chuva e dançar, em agradecimento aos céus. Minha mãe, a mainha Tereza, botava osso na sopa e dizia aos oito filhos que era sopa de carne. Só conheci carne no Rio. Meu pai, carpinteiro, morreu sem saber ler. Era alcoólatra e saiu de casa quando eu tinha 5 anos. Minha mãe trabalha como faxineira e é analfabeta, mas sempre valorizou o estudo. Dizia que um caderno e uma caneta me levariam a realizar todos os meus sonhos. Mesmo com tantos obstáculos, nunca fui dramático. Tanto que meu apelido era Boca de Flor, porque vivia rindo e fantasiando. Olhava as novelas pela janela do vizinho, via a mesa colorida e farta, pensava: “Como faço para estar ali?”

E como você veio parar no Rio?

Todo circo que chegava à cidade eu pedia para ir junto, mas ela não deixava. Aos 16 anos não aguentava mais, estava morrendo por dentro. Disse: “Mainha, preciso buscar meu sonho. Não me deixe morrer. Ou vou embora ou me nego a ficar nesta existência.” Vim de carona num caminhão de melão, com R$ 25 que ela pegou emprestado. No Rio, fiz faxina, lavei prato. Até que um cliente do restaurante, o coronel bombeiro Emílio Carlos Rollo Schneider, me ajudou. Pagou meus estudos, me adotou como filho. Disse: “O único retorno que quero é que você ajude os outros.” Meu sobrenome artístico é em homenagem a ele.

E como surgiu a ONG No Palco da Vida?

Um dia me chamaram para dar aula na Uerj a alunos que entraram pelo sistema de cotas. De lá, dei oficina no Sesc de Ramos para meninos do Complexo do Alemão. Depois, a mãe de uma aluna ofereceu o pequeno quintal de casa para continuarmos o trabalho. O número de alunos cresceu e percorremos vários lugares, até alugarmos essa casa. Aqui, eu junto referências do Théâtre du Soleil, do Tá na Rua, do Teatro do Oprimido e da Escola da Ponte, de Portugal. Pego o que cada aluno tem de melhor, observando que canal foi ativado pela arte. Tenho alunos com deficiência, como autismo e Down. Vi que uma delas, a Juliana, gosta de carimbó. Então, ela dança no espetáculo. Já outro rapaz com deficiência, o Carlos, tem talento musical. Então, ele toca e canta.

Como o projeto impacta os alunos?

Tenho primeiro que melhorar a autoestima. Eles moram em comunidades, enfrentam preconceitos, resistência da família. Digo: “É impossível que só exista um Wal. Eu fui possível. Se estou aqui, vocês podem ser o que quiserem.” Há casos como o William. O pai saiu de casa quando ele era recém-nascido, tem um irmão esquizofrênico, era muito agressivo e hoje é monitor do projeto, atua, escreve, dirige, toca, compõe. Damião tinha largado a escola há oito anos, mas voltou após um mês de oficina. Dona Ana, de 76 anos, fala: “Quando venho aqui as dores do meu corpo somem.” Caio acorda às 5h para vender salgado e ajudar a pagar o aluguel da sede. Já dei muita aula com vela por falta de pagamento da luz, mas não deixo a chama apagar. O teatro me tornou visível, quero que a voz desses meninos também chegue ao mundo.

Por Mauro Ventura



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