Guido em sua prancha: um jovem tipicamente carioca (Foto: SURFFOTO) |
Pouco antes de celebrar uma missa na Barra da Tijuca, há duas semanas, o religioso Roberto Lopes resolveu passar em uma farmácia. Ali, o vigário episcopal encontrou dois jovens surfistas, um deles com um corte profundo no rosto. O rapaz acabara de se ferir ao surfar perto dali. Assim que o viram, pediram que ele fizesse uma oração a São Guido para que o ferimento curasse rapidamente. Dom Roberto, que é vigário episcopal e delegado da Congregação para a Causa dos Santos da arquidiocese do Rio, logo compreendeu que os jovens não se referiam a santos medievais homônimos mas sim a outro Guido, criado em Copacabana e morto aos 34 anos no Recreio dos Bandeirantes, em um acidente enquanto surfava. O encontro fortuito do vigário com os surfistas na farmácia, dá a dimensão da popularidade de Guido Schäffer, rapaz comum, nascido em Volta Redonda, que se formou em Medicina e que aos 26 anos decidiu se dedicar à vida religiosa. Desde sua morte, a fama de milagreiro passou a atrair uma legião de fiéis, que hoje sustentam um vigoroso movimento por sua canonização, marcado por impressionantes demonstrações de fé. Uma delas deve acontecer no domingo, dia 1º de maio, data que completa sete anos de sua morte. Na ocasião, o cardeal arcebispo Dom Orani Tempesta celebrará uma missa no posto 11 da Praia do Recreio, próximo ao local onde Guido morreu. Ao final da cerimônia, um grupo de surfistas entrará na água para homenageá-lo. A celebração coincide também com o momento em que a fase do processo de canonização de Guido, a cargo da Cúria do Rio, chega à reta final. Até julho serão enviadas ao Vaticano mais de 20 000 páginas de documentos e depoimentos que indicam a sua santidade. “Não é uma questão de acreditar ou não, há relatos extraordinários. Ele é o nosso São Francisco, que ia ao encontro dos necessitados”, diz dom Roberto, o responsável pelo processo de beatificação.
O mito do “santo surfista” começou a chamar a atenção da igreja logo após a morte de Guido. Na missa de corpo presente do rapaz, a Paróquia de Nossa Senhora de Copacabana, na Rua Hilário de Gouveia, ficou pequena diante da multidão que veio se despedir. “Até ali não tínhamos a dimensão do que ele havia feito. Na fila de cumprimentos, várias pessoas vinham agradecer por sua ajuda por livrá-las da depressão, do alcoolismo e de outros vícios”, lembra a irmã de Guido, a advogada Angela Isnard, 45 anos. Nos meses seguintes, o túmulo do médico-seminarista, no Cemitério São João Batista, passou a ponto de romaria de devotos, que deixavam ali flores e placas em reconhecimento às graças alcançadas. O ritual se repete hoje na Igreja Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, para onde seus restos mortais foram transferidos em janeiro do ano passado. Histórias de testemunhos de cura, intercessões em momentos críticos e realizações de pedidos não faltam. Uma das mais impressionantes é a do cardiologista Bernardo Amorim, 48 anos, internado com a Síndrome de Guillain-Barré — doença neurológica grave caracterizada pela inflamação dos nervos e fraqueza muscular —, em fevereiro de 2014, no CTI da Casa de Saúde São José, no Humaitá. A doença evoluiu rapidamente e, em poucos dias, ele perdeu os movimentos abaixo do pescoço. Durante 39 dias de internação, sua mãe, a funcionária pública aposentada Eliana Amorim, rezou dia e noite pedindo a ajuda de Guido. “Para mim foi um milagre, meu caso está fora das estatísticas. Não há relatos de alguém que tenha se recuperado tão bem e em tão pouco tempo”, afirma o cardiologista, que saiu do hospital andando e seis meses depois já estava atendendo e realizando cateterismos, sua especialidade.
Típico garoto da Zona Sul, Guido era o filho do meio de um médico e uma dona de casa. Cresceu indo à praia, praticando esportes e estudando numa escola particular. Como os seus amigos, falava gíria, frequentava festas e chegou a ser noivo. Desde pequeno, porém, demonstrava especial compaixão pelos mais necessitados. Sua mãe, Maria Nazareth Schäffer, 67 anos, lembra que não foram poucas as vezes em que ele chegou em casa sem camisa e sem sapatos, depois de tê-los dado a algum mendigo. Na adolescência, começou a frequentar grupos de jovens da Igreja Católica. Foi num desses encontros que padre Jorjão, da Paróquia Nossa Senhora da Paz, o conheceu. “Nunca vi alguém com tanta fé e ao mesmo tempo tão normal. Quem o conheceu tinha a certeza de estar diante de alguém de Deus”, diz. A convivência com o médico-surfista, que o tratava como Father Big George, foi tão marcante que no ano passado o religioso lançou o livro Guido — Mensageiro do Espírito Santo, sobre sua vida. Padre Jorjão emociona-se ao lembrar o episódio em que o jovem, já formado em medicina, socorreu um morador de rua. Ele passou três horas conversando e tratando um abscesso que o homem tinha na cabeça. Ao final, recorda o padre, o mendigo agradeceu dizendo: “Bendita pedrada! Foi preciso acontecer isso para conhecer Jesus!” O surfista de ondas grandes Rodrigo Resende, três vezes vencedor do campeonato Big Trip, também não esquece a convivência com o amigo. “Nunca vi alguém tratar os excluídos com tanto respeito. Também era impressionante a paz interior que transmitia”, relata o big rider, que também é médico e estudou com Guido na Faculdade Souza Marques. Hoje, sempre que se vê diante de uma situação difícil reza para ele.
A crença em santos, desde os tempos mais remotos da igreja, ocupa papel de destaque no catolicismo. De acordo com os preceitos da religião, por estarem junto de Deus, têm poderes para interceder pelos fiéis. Até o ano 1 200, quem declarava a santidade de uma pessoa era o próprio bispo local, ouvindo o povo. A partir daí, foi criado um trâmite canônico muito próximo do que existe hoje. Iniciado em janeiro de 2015, o processo de canonização de Guido encontra-se na fase de conclusão dos relatos que embasem o que a Igreja chama de trajetória iluminada e virtudes heroicas. Em 2014, a Santa Sé já havia dado o nihil obstat (nenhuma objeção, em latim) e o jovem foi intitulado Servo de Deus, o primeiro estágio do processo. O próximo passo acontecerá em junho, quando peritos, entre eles um advogado italiano, analisarão a papelada. No mês seguinte, a documentação segue para o Vaticano. Uma vez comprovado um milagre por especialistas de Roma, ocorrerá a beatificação. Comprovado o segundo milagre, poderá ser declarado santo. Devotos de “são Guidinho”, forma carinhosa pela qual o rapaz também é chamado, no entanto, não faltam por aqui. A funcionária pública Juliana Gomes de Almeida, 38 anos, não tem dúvidas dos poderes de Guido. Ela conta que, com dificuldades para engravidar, precisou remover um pólipo do útero. “Tinha medo de não poder ter filhos depois da operação e rezava o tempo todo pedindo sua ajuda. O que nem eu nem os médicos sabíamos é que já estava grávida quando o pólipo foi retirado. E ele protegeu o meu filho”, acredita ela, mãe de João Pedro, 9 meses. Também há inúmeros relatos que atestam o espírito humanitário do jovem, que antes de virar seminarista, atuou como voluntário ao lado das irmãs Missionárias da Caridade, ordem criada por Madre Teresa de Calcutá, e fez residência na Santa Casa da Misericórdia. “Saltava aos olhos a sua generosidade. Era um médico que não tratava só do corpo, cuidava da alma”, enfatiza o professor Milton dos Reis Arantes, chefe das 4ª e 20ª enfermarias de clínica médica, por onde Guido passou. “Após a sua morte, ele me restituiu a fé. Voltei a rezar”, completa.
O processo de canonização ainda nem chegou oficialmente ao Vaticano, mas o nome de Guido Schäffer já corre o mundo. Há santinhos com seu rosto e orações em inglês, francês, italiano e polonês, além de pedidos para impressão no Vietnã e nas Filipinas. Jornais estrangeiros de prestígio, como o americano The Wall Street Journal, publicaram reportagens com a sua história. Embora o Brasil ostente o maior rebanho católico do mundo, com 173 milhões de fiéis, o país tem apenas dois santos: Santa Paulina, canonizada em 2002, e São Frei Galvão, cinco anos depois. No Rio, além de Guido, há quatro candidatos à santidade — a menina Odette Vidal de Oliveira, a Odetinha; a irmã Maria José de Capistrano de Abreu, filha do historiador Capistrano de Abreu; e o casal Zélia e Jerônimo Magalhães, com uma vida dedicada a ajudar ao próximo. A possibilidade de surgir um santo jovem — e que viveu nos dias atuais — vai de encontro ao propalado processo de renovação da Igreja Católica. Em seus discursos, o papa João Paulo II repetia sempre que precisávamos de santos de calça jeans. Padre Omar, reitor do Santuário do Cristo Redentor, que conheceu o médico-surfista, lembra que o rapaz concedia graças em vida. “Presenciei uma delas. Vi Guido abraçar um morador de rua completamente transtornado e quando ele o soltou já não tinha qualquer sinal do uso de drogas”, afirma. “Era impressionante como um jovem como a gente falava de Deus com tanta naturalidade e convicção. Tocava profundamente quem o conhecia”, conta o engenheiro Eduardo Martins, 40 anos, um dos melhores amigos de Guido. O acidente que o levou à morte aconteceu quando um grupo de amigos comemoravam justamente a despedida de solteiro de Eduardo. Hoje é ele quem organiza a missa do dia 1º de maio na Praia do Recreio, convicto de que a onda de fé não pode parar.
Por: Sofia Cerqueira
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