segunda-feira, 1 de junho de 2015

Ex-borracheiro vira juiz federal após quatro anos estudando resumos

Foto: Divulgação/Tribunal Regional Federal
Este 1º de junho será lembrado por Rolando Valcir Spanholo como um dos mais importantes dias de sua trajetória. Aos 38 anos, após ter trabalhado como borracheiro, costureiro e vendedor ambulante em Sananduva, no norte do Estado, ele se torna, hoje, juiz federal substituto em Goiás.

Pelo exemplo de determinação, a história do agora magistrado sensibilizou o país no início do ano, quando ocorreu a posse no Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região (Brasília). Após ter participado do Encontro com Fátima Bernardes, na Rede Globo, Spanholo viu sua caixa de e-mail lotar. Eram pedidos e mais pedidos de entrevista — dos quais declinou educadamente.

Rolando não é de se expor. Por isso, foi bem claro em relação aos motivos que o levaram a conversar com a ZH: divulgar sua história poderia ser importante para motivar os gaúchos, uma vez que, entre os 58 aprovados no concurso para juiz federal, somente dois eram do Estado.

Dias depois, o homem de voz tranquila e sotaque ainda carregado atendia ao telefonema da reportagem. Contou seu percurso desde a infância na pequena Sananduva, município de 15 mil habitantes a cerca de 400 quilômetros de Porto Alegre. Terceiro de cinco irmãos, filhos de pai borracheiro e mãe costureira, Spanholo começou a trabalhar aos nove anos na oficina do pai.

Lavava carro, limpava cabine de caminhão e fazia pequenos reparos em pneus. Foi principalmente por necessidade da família que o menino se comprometeu logo cedo com a rotina de gente grande — da qual se lembra com orgulho.
Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal
Mais tarde, trabalhando no ramo das confecções junto à mãe, Spanholo seguiu o exemplo dos outros irmãos e, com crédito educativo, também foi fazer Direito na Universidade de Passo Fundo (UPF). Quando tinha 17 anos, seu dia começava às 7h, percorrendo a região oferecendo cortinas e lençóis de porta em porta. Ao fim da tarde, tomava um ônibus rumo à faculdade — percurso de cerca de 250 quilômetros. Retornava após a uma da madrugada.

— Sempre fui um aluno mediano. Me esforçava, mas tinha limitações de tempo. Na viagem até Passo Fundo, dormia 15 minutos e depois estudava até chegar na universidade. No retorno, era a mesma coisa. Acho que por isso tenho esses quatro graus e meio aqui em cima do meu nariz: por conta de estudar dentro do ônibus — conta. 

Novo rumo começou por sugestão de professor

Pode até ter caído no mundo das leis por seguir os irmãos. Pode só ter dado conta do recado com a ajuda de colegas. Mas foi por esforço próprio que, ao fim da faculdade, foi reconhecido.

— Por que não te inscreves no concurso para a Escola Superior de Magistratura (Ajuris) na Capital? Tens o perfil calmo e de raciocínio lógico — disse um professor.

Após formado, em 1998, encarou a sugestão do docente como desafio. E foi selecionado. Nesta época, já pai, Spanholo passava a semana na Capital. Na sexta-feira, após o meio-dia, pegava o trecho até Sananduva, onde dividia o tempo entre a mulher, o filho de seis meses e alguns serviços no escritório de advocacia do irmão. Quase desistiu. Estava longe da família, o curso era caro, ele não tinha dinheiro — talvez desculpas para um pensamento que o perseguia:

— Fiz a faculdade para ser advogado, nem tinha passado pela cabeça a ideia de que teria condições de um dia ser juiz. Tinha o sentimento de que era preciso uma boa base familiar, em questão financeira.

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Reconhecendo a situação de Spanholo, um colega o convidou para dividir apartamento, sem custo algum. Era o fôlego de que precisava. Concluiu o curso e prestou concurso para ser promotor, juiz do trabalho, procurador, juiz estadual... Acabou sempre no “quase”, virando praticamente um especialista em calcular as notas de cortes das provas objetivas de concursos.

Quando a mulher iniciou a faculdade, por questão de tempo e dinheiro, adiou o que havia se tornado sonho: ser juiz. Focou na carreira como advogado em Sananduva, que perdurou os últimos 15 anos — oito deles sem pensar em prestar provas. Até que, em sua cidade, assumiu uma juíza que havia estudado com ele na Ajuris. Ela o motivou a seguir tentando.
Spanholo somou 200 kg de cópias durante os quatro últimos anos de estudos
Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal
Retomou a pilha de cópias de material de estudo (que chegou a pesar 200 quilos de papel) e prestou mais de 20 concursos entre 2010 e 2014. A rotina incluía dormir pouco, abdicar de parte da vida social e trabalhar muito. Para superar o esgotamento emocional, o concurseiro passou a assistir a vídeos motivacionais na internet. E foi sentindo que, cedo ou tarde, o objetivo seria cumprido:

— Como o processo do levantar e cair, do reprovar e superar, você vai moldando a sua personalidade, tendo serenidade. E começa a sentir que a hora está chegando. Aquele sentimento de incapacidade vai dando lugar a algo mais concreto. Então, quando você finalmente vê o seu nome lá, você acaba se emocionando. Passa um filme das privações. Mas eu faria tudo de novo.

No mesmo dia em que soube que havia sido aprovado como juiz, Spanholo acompanhou o filho na matrícula no curso de Direito na UPF — ali onde tudo se iniciou. Foi empossado no TRF1, em Brasília, passou por quase um semestre de formação e hoje passa a decidir como juiz substituto na 1ª vara de Anápolis. Se tem próximos planos? Sim, os mesmos: ser um bom juiz, com toda a bagagem que a vida o emprestou:

— O cidadão forma a sua bagagem intelectual, mas não muda a sua trajetória. E se ele se esquecer dela, pode ser que ele até entre em uma zona perigosa, que oferece brecha para abusos. Todos somos passíveis do erro, mas jamais conseguirei olhar um processo sem ter o raciocínio de quem vivenciou a dificuldade. Quem aprendeu a ser vendedor de porta em porta sabe tratar bem as pessoas. Isso fica.
Por: Bruna Scirea

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