terça-feira, 19 de maio de 2015

Diretor de A História da Eternidade: “O sistema de distribuição e exibição é uma máfia”

Camilo Cavalcante ao lado da atrizes do filme A História da eternidade: Zezita Matos, Débora Ingrid e Marcélia Cartaxo
No sertão já teve quem falasse das mulheres fortes. Não lembro bem se alguém já falou de três mulheres que fazem do desejo suas epifanias, seus modos de desabrocho. E é sertão, né? Essa região que ainda pauta a submissão feminina como regra, noves fora vem um cara da capital falar que “o desejo liberta o que o destino aprisiona”. São três personagens que nos colocam em dilemas humanos, numa colcha de retalhos de metáforas sublimes, de nuances sobre a região que passaria desapercebido ao olhar capitaneado pelo urbano.

Apesar da força poética do filme, Camilo Cavalcante, diretor de “A História da Eternidade“, também fala sobre sua penitente instiga em trabalhar com cinema, de fazer parte e de ser entusiasta da sétima arte como mola-motora pra outros movimentos do indivíduo. “Cinema Cabra da Peste” seja em qualquer região, em qualquer localidade, com quaisquer bitolas, o que não vale é fazer cinema “Bitolado”. Camilo bateu um papo com a galera da  Berro sobre seu trabalho e aqui vai a primeira parte da entrevista onde ele conta um pouco sobre sua carreira e o fazer cinematográfico.


Revista Berro: O que tu achas desse processo de migração dos cinemas para os shopping centers e a conseqüente diminuição dos cinemas de rua no Brasil?

Camilo: Eu nasci nos anos 70 e vivenciei muito forte os cinemas de bairro. Era a coisa mais linda que tinha, porque sempre as sessões eram lotadas, além do preço ser acessível. Você tinha a sensação realmente de entrar em outro mundo quando entrava numa sala de cinema e quando saía você tava de volta à realidade das ruas, do seu bairro, ou do centro da cidade. Hoje em dia você entra no shopping, que é uma ilusão e vai pra uma sala de cinema dentro do shopping, é uma ilusão dentro da ilusão. Com essa coisa de Multiplex, o cinema é tratado como mercadoria mesmo. As pessoas vão ver cinema como quem compra uma roupa, um sapato. Vivemos num mundo em que impera uma ditadura do consumo e da publicidade. Eu sinto que falta um espaço para a reflexão e para o sentimento.

Nesse processo de distribuição de “A História da Eternidade” nos cinemas eu posso dizer categoricamente que o sistema de distribuição e exibição no Brasil é uma máfia dominada por grandes corporações, por poucas distribuidoras, corporações essas que detêm o poder econômico, conseqüentemente os fins e os meios. Fica muito difícil furar esse bloqueio. Essa máfia chega muitas vezes ao absurdo da sabotagem, do boicote pra não passar o filme independente numa sala de shopping. O cinema autoral é tratado como passageiro de quinta categoria, é como as classes sociais mais pobres são tratadas pela elite dominante.

Como você enxerga sua produção em meio a esse turbilhão de imagens que são feitas para vender?

Camilo: Eu enxergo meu cinema como artesanal, que prima pela poesia. O foco é a poesia audiovisual. É um corpo estranho em meio a essa enxurrada de filmes que vemos no circuito comercial. Inclusive no circuito artístico também, nós vivemos num mundo onde as pessoas estão muito cínicas e muito céticas também e isso acaba refletindo na produção audiovisual. Pelo menos “A História da Eternidade” vai na contramão desse cinismo e desse ceticismo, é um filme que tem emoção, que fala de amor, que fala de sonho, que fala de desejo.

O filme tem outra relação com o tempo cinematográfico, se passa numa região seca, mas busca encharcar as pessoas de emoção, por isso que o vejo como um filme um pouco diferente daquilo que vem sendo produzido.

oia.

Você já utilizou de várias bitolas cinematográficas para realizar seus filmes (Betacam, 8mm, VHS). Você pode comentar sobre as possibilidades de realização do início de sua carreira como cineasta e hoje?

Camilo: Comecei a trabalhar com audiovisual em 1995, na época eu fazia faculdade de jornalismo em Recife.  Eu já tinha vontade de trabalhar com cinema desde a adolescência, daí na faculdade resolvi botar a mão na massa, praticar mesmo. Naquela época o Collor tinha acabado com a Embrafilme, então a produção cinematográfica no Brasil era quase nula…

 Com exceção dos filmes dos Trapalhões, né?

Camilo: E olhe lá… em 95 a produção era muito insípida. Collor acabou com o cinema brasileiro. Naquele momento eu tinha acabado de entrar na universidade e era na época do VHS. Ganhei uma câmera VHS compacta e fiz um vídeo chamado Cálice, que contava a história de um suicídio que aconteceu lá na casa do estudante, na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), um fato real e fizemos uma ficção baseado nesse acontecimento. A partir daí eu passei a experimentar com os recursos que tinha a mão, sempre junto com amigos, com a família, fui experimentando.

Na verdade o caso de eu ter experimentado várias bitolas estava muito relacionado ao que estava a mão, ao que era mais fácil e o mais barato pra tornar a ideia algo realizável. Em 2000 eu ganhei um concurso do Ministério da Cultura e eu pude fazer algo mais estruturado, daí fiz O velho, o mar e o lago. A experimentação pra mim veio de uma forma muito natural, dependia dos recursos que eu tinha. Inclusive, em 97 eu escrevi o Manifesto Cabradapeste, que dizia justamente o seguinte: não importa a bitola, não importa o formato, o que importa é você se expressar, expressar sua ideia em audiovisual. O que importa é você botar pra fora, você berrar. Não existe nada mais lindo do que ver uma ideia se libertando.

Hoje a produção cinematográfica ta troando lá em Recife, né?

Camilo: Na verdade Pernambuco sempre foi um celeiro importante da produção audiovisual no Brasil. Desde o ciclo de 20, passando pelo ciclo do super-8 na década de 70, sempre foi pulsante na produção de imagem. Agora a gente tá vivendo o melhor momento, sem dúvida. O governo do estado reconheceu o esforço dos realizadores que fazem cinema lá. A gente tem um edital, o Funcultura, do governo do estado de Pernambuco, o que gera uma cadeia produtiva de incentivo à produção audiovisual. Desde curtas, longas, cineclubes, programas pra TV, é muito amplo, sabe?

Mas pra mim o grande trunfo do cinema feito em Pernambuco é essa diversidade de ideias, não existe um único fluxo. Ninguém tá copiando ninguém. Não é um movimento, são várias movimentações de pessoas e de grupos de diversas gerações que se expressam através do audiovisual e cada filme tem a cara de seu realizador. Ninguém tá fazendo cartão de visita pra trabalhar na indústria, ou imitando o cinema hollywoodiano… cada um se expressa honestamente em seu trabalho. Isso cria muitas vertentes estéticas, artísticas e ideológicas.
Na segunda parte da entrevista Camilo Cavalcante fala sobre cinema pernambucano e cearense, além de explicar alguns processos de construção do seu último filme, o longa A História da Eternidade.

Revista Berro: Você cita alguns poetas como Drummond e Torquato Neto no seu último longa. Como foi a montagem das referências artísticas n´A História de Eternidade?

Camilo: Na verdade eu trabalho sempre com muitas referências e influências. Todos os meus filmes têm muitas referências, seja literária, seja musical, seja cinematográfica, seja das artes plásticas. Nesse filme é como um mural de Alfonsina, uma bricolagem de referências que me tocam, primeiramente, coisas que me sensibilizam.
Que você acha que vai encaixar na história?

Camilo: Vem pra mim de uma forma esquemática e natural. O filme demorou muito pra ser realizado, com processo de inscrição de edital e tal, e nesse tempo pra mim a música “Fala” era como um dogma. Eu sabia da importância dessa música dramaturgicamente, eu sabia que o primeiro movimento de câmera seria quando entra o arranjo de violinos, seria ali. É um dogma que eu me coloquei. Quando o mundo gira junto com o personagem, e isso acontece aos cinqüenta minutos de filme, é um momento de epifania, um movimento libertário, o quanto a arte pode ser libertária e transformadora. Um momento onde o personagem parece que vai alçar voo. É um filme que tem três momentos elípticos. Tem esse primeiro momento, que é o “fala”. Depois tem o momento onde o tio apresenta o mar pra sobrinha, onde a catarse é possível através desse movimento. E tem um terceiro momento elíptico que é o sol com um halo, que representa o olho do cego que vagueia procurando por um, representa o ovário de Querência fecundado, representa o sol, logicamente… e representa também o Ouroboros, que é o símbolo da cobra comendo o próprio rabo, que significa a eternidade. Um ciclo que sempre se repete.

O sol sempre há de brilhar mais uma vez, né?

Camilo: Pois é, a vida continua… a gente tem tudo ali representado naquele microcosmo, a humanidade tá representada em termo de sentimento: tem o ódio, tem o ciúme, tem o desejo, tem a gratidão, a ingratidão, tem a generosidade. Muitos sentimentos e contradições do ser humano representadas ali naquele microcosmo.

Algumas pessoas colocaram os personagens como clichês, como uma representação forçada do sertão. Você pode comentar sobre a construção dos personagens?

Camilo: A gente tá mexendo com um trabalho que é como uma mitologia sertaneja. O cego Aderaldo, a menina sonhadora, o pai patrão, o artista como uma pessoa doente, incompreendido… mas acredito que a gente consegue ressignificar esses arquétipos. Do mesmo jeito que eu tive a liberdade de fazer o filme, de contar a estória da maneira como eu queria, o público tem a liberdade de sentir o filme da maneira que puder. Apesar de tudo é um filme que tem várias camadas, várias formas de leitura. Mas pra mim o problema é que tem gente que olha e vê como um livro com as páginas em branco, nisso aí eu não posso fazer nada.

Você não pode colocar um arco-íris onde você pretende um sol…

Camilo: É… é um filme que se completa com o olhar do público.

Em sua fotografia existe uma unicidade de quadro, na escolha das cores e tal. Você pode falar dessa constância em seu trabalho?

Camilo: Pra mim existem três pilares principais para a construção dos meus filmes. Os atores, o roteiro e a fotografia. N´A História da Eternidade quem assina a fotografia é Beto Martins, que é sertanejo, ele é de Uauá, no interior da Bahia. Ele construiu toda a carreira em Recife, mas tem raízes profundas no sertão e trouxe esse olhar de dentro pra fora.

Você pode comentar sobre a presença da morte no seu trabalho? É um tema bem recorrente nos seus outros filmes, né?

Camilo: Morte é vida, né? É a coisa mais natural e mais óbvia da vida. Quando você nasce você sabe que vai morrer. Eu me identifico muito com o Torquato Neto, eu acho que sou um ser melancólico, reflexivo, e a morte faz parte dessa reflexão. Se você passa a encarar a morte de uma forma natural, você acaba sendo mais feliz, ao contrário do ser deprimido que passa a reclamar da proximidade da morte.
O Chico Buarque uma vez falou que se incomoda com o fato de ter que escrever em um livro o que ele poderia escrevercamilo.segunda em uma crônica. A História da Eternidade foi finalizado mais de dez anos depois do curta homônimo seu. Como foi essa relação com o tempo nessas duas obras?

Camilo: Na verdade eu acho que cada ideia pede um tempo, não é nem o autor quem diz isso. Depende até quando você pretende mergulhar e enfiar o dedo na ferida. Eu acredito que o longa não é uma extensão do curta, são dois trabalhos bem diferentes com um contexto sertanejo semelhante. Tem a minha busca pela poesia audiovisual que também tá presente nos dois trabalhos. A ideia do longa nasceu enquanto o curta tava sendo filmado, eu acho que o símbolo do Ouroboros também tá presente nas duas obras, mas narrativamente são obras bem distintas. A ideia vem do nosso lado mais subjetivo, mais inconsciente, então ela não vem com um tempo predefinido.

O Baile Perfumado (filme de Lírio Ferreira e Paulo Caldas) foi um marco da retomada do cinema nacional e também uma celebração do movimento Manguebit, juntando muitos musicistas, cineastas, artistas plásticas e tudo mais. Esse processo chegou a saturar a cidade, ou catalisou outros processos?

Camilo: O Baile Perfumado foi o filme mais importante da retomada do cinema brasileiro e veio música e cinema junto numa época de seca cultural no país, onde não tinha nada. No caso do cinema isso facilita a vida artística. Por exemplo, ajudou o pessoal do audiovisual há 12 anos atrás a se juntar para escrever um manifesto e entregou ao governador que incrivelmente acatou. Logo depois ele fez um edital consolidado de 2 milhões, no ano seguinte 4 (milhões), no outro ano 6 (milhões), no ano seguinte 8 (milhões), no outro 10 (milhões) e esse ano foi de 12 milhões. Sem dúvida foi fruto dessa união, além da conjunção de outros fatores, como o reconhecimento da produção pernambucana no circuito nacional. Hoje em dia o cinema é cultura, mas também é economia, emprega muita gente em muitos setores primários, secundários e terciários.

E sobre a produção cearense, como você analisa o cinema produzido aqui?

Camilo: A produção cearense é fantástica! Aqui tem várias gerações coabitando, como lá em Recife. Você encontra produção desde Rosemberg Cariry, passando por Karim Ainöuz, o pessoal do Alumbramento, Ivo Lopes, que é um fotógrafo maravilhoso… tem o pessoal mais novo, como Leonardo Mouramateus. É um audiovisual muito inquieto e muito diverso. Eu acredito que o cinema nordestino é o que tem de melhor na produção cinematográfica brasileira contemporânea, o resto meio que se acomodou, tá tudo meio que em banho-maria. Os nove estados do nordeste tem essa pujança artística/criativa muito forte. Claro que em alguns estados se produz mais que outros, foi onde o governo conseguiu enxergar essa importância estratégica do audiovisual pra a cultura de um povo, mas em termo de potencial o nordeste é um vulcão à beira da erupção criativa.


por Revista Berro

revistaberro.com

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