Por Valéria Hartt
O consumo prolongado de carne vermelha é um conhecido fator de risco
para o desenvolvimento de diferentes tipos de câncer. Embora várias
teorias tenham tentado explicar esta associação, nenhuma foi
conclusivamente comprovada. Agora, um novo estudo realizado por
pesquisadores da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos,
demonstra que determinadas formas de uma substância conhecida como ácido
siálico não humano, o ácido N-glicolilneuramínico (Neu5Gc), presente na
carne vermelha, pode incitar um processo inflamatório que predispõe ao
câncer.
O Neu5Gc é uma substância que depois de metabolizada fica
biodisponível nos tecidos humanos, o que gera a produção de anticorpos
em circulação. A interação entre os antígenos circulantes e os
anticorpos anti-Neu5Gc é capaz de estimular processos inflamatórios,
levar àcarcinogênese e à progressão do tumor.
A descoberta foi
evidenciada em uma pesquisa clínica com cobaias, que foram alimentadas
com uma dieta contendo Neu5Gc. Com o tempo, as cobaias desenvolveram
evidências de uma inflamação sistêmica e com maior risco para o
desenvolvimento de tumores do fígado quando comparado com o grupo
controle. No grupo que recebeu dieta com Neu5Gc, houve uma incidência
cinco vezes maior de cancer do fígado.
Para os pesquisadores, o
estudo traz dados que fornecem uma explicação para a associação entre o
consumo de carne vermelha e o risco de câncer. O oncologista Antonio
Carlos Buzaid, diretor geral do Centro Oncológico Antonio Ermírio de
Moraes (COAEM), explica que a pesquisa demonstra a correlação entre o
Neu5Gc e a inflamação crônica associada ao desenvolvimento de tumores.
“Há tempos foi estabelecido o nexo epidemiológico entre o consumo de
carne vermelha — bovina, suína e de cordeiro — e a incidência de doenças
como o câncer e diabetes. Populações que consomem pouca ou nenhuma
carne vermelha apresentam menores taxas de câncer”, esclarece o
especialista. “Agora, esse estudo demonstra em um modelo animal o papel
da inflamação crônica desencadeada pelo consumo da carne”.
O
organismo humano é geneticamente incapaz de produzir Neu5Gc, mas esta
molécula é detectável em superfícies de epitélio humano e do endotélio, e
aparece em valores ainda mais elevados em tecidos malignos. Assim, a
única via para tornar possível a biossíntese deNeu5Gcé a ingestão
dietética, especialmente pela carne vermelha.
A hipótese dos
pesquisadores da Califórnia não foi comprovada em humanos, mas não resta
dúvidas de que o estudo lança luz sobre os efeitos deletérios do
consumo da carne vermelha e explica por que o churrasco de frango recebe
sinal verde, enquanto o de carne continua sob fortes críticas. O
problema é mesmo a carne e não tanto o processo de grelhá-la, como antes
se pensava. Embora os dados disponíveis na literatura indiquem em
humanos uma forte associação entre o consumo de carne vermelha e o
câncer de colon, o modelo animal que demonstrou o impacto do Neu5Gc
evidenciou aumento de risco para câncer de figado, que é a forma mais
comum de câncer nas cobaias estudadas, o que neste caso foi considerado
como a “prova de princípio” da investigação.
Os pesquisadores
também demonstraram que a quantidade de Neu5Gc varia entre os diferentes
grupos de alimentos e até mesmo de acordo com a forma de preparo. O
bife, por exemplo, contém um dos mais altos níveis da substância, com
231 microgramas de Neu5Gc por grama de carne. Em produtos derivados do
leite, a presença chega a 43 microgramas de Neu5Gc por grama, como é o
caso do queijo de cabra. Em contraste, aves e ovos não contêm Neu5Gc,
enquanto nas frutas e vegetais não há nenhum tipo de ácido siálico. Nos
frutos do mar também não foram encontradas quantidades significativas de
Neu5Gc, com exceção do caviar (veja quadro abaixo).
Resumo do conteúdo e percentagem de Neu5Gc (em relação ao total de ácidos siálicos) dos vários grupos de alimentos
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