segunda-feira, 29 de abril de 2013

As mãos que cuidam do Theatro José de Alencar

FOTO SARA MAIA
A estrutura em ferro, importada da Escócia, é uma das belezas do Theatro José de Alencar. Outro patrimônio do lugar são as pessoas


Para encarar a maior faxina a que me propus até aqui, escolhi o turno da tarde/noite, das 14 às 22 horas. Porque, às 7 e meia da manhã, quando começa o primeiro expediente da zeladoria no Theatro José de Alencar (TJA), não encaro nem pensamento – quanto mais ônibus lotado e trânsito sem-fim. Palmas para Deusa, Jaqueline, Mariazinha e tantas que cuidam de filho, marido, casa e de si próprias antes mesmo do dia no Theatro.

Chego ao TJA em uma terça-feira quente, depois do almoço e de marcar meu casamento no cartório. As vidas – minha, da Dulce, da dona Ana e de quantos passarem por nós, com pressa ou com abraços – vão se encontrar e se misturar em olhares, prosas, risos e lamentos e nos amores que cada um tem a seu modo. E assim vão terminar o tempo mais amplas.

O TJA me recebe de portas abertas desde o e-mail da diretora Izabel Gurgel: “Seja bem-vinda, Ana Mary! Bom trabalho! Bons encontros!”. Mas ela previne que poderei me surpreender com a sujeira deixada por espectadores e visitantes, que derramam pipoca e grudam chicletes em todo canto, e também com a situação dos banheiros – que acabam servindo ao povo do Centro, já que a Cidade não oferece banheiros públicos. Mais um motivo para eu vestir a camisa do lugar-monumento, um dos mais belos patrimônios de Fortaleza, inaugurado em 1910.

Na primeira hora da faxina, sinto-me perdida nos 12 mil metros quadrados do Theatro. Olho o jardim projetado pelo paisagista Burle Marx (com mais de 50 tipos de plantas), os quatro pisos da sala principal (plateia, balcão e frisas, camarotes, torrinha), o foyer e o salão nobre de 120 lugares; calculo o número de banheiros, as escadas e mais escadas em ferro, os imensos vitrais, o tamanho do palco principal; reconto as centenas de cadeiras de palhinha... sem saber por onde começar a limpeza.

Claro que uma andorinha só não faz essa manutenção. Diversas mãos cuidam do TJA: Deusa, Jaqueline, LuciBranca, Mariazinha e Nilda formam a equipe de zeladoria, indica Izabel Gurgel. “Mais dona Ana e Dulce, que são camareiras. Gadelha e Ítalo estão na técnica e são coringas. Uma limpeza feita no jardim, no Carnaval, por exemplo, contou com Gadelha e Nilda”, completa a diretora.

Café e histórias
Comecei a conhecer cada um e os bastidores pelo Porão, espaço sob o palco principal e que pode se transformar em um recanto de encenações. É no Porão, assombram, que a bailarina fantasma dança há eternidades. Mas eu só vi mesmo foram quatro camarins, dois banheiros, uma copa, uma sala administrativa e móveis para dar uma geral.

O café de dona Ana me chamou, primeiro, para a copa. A camareira Ana Maria Silva de Souza trabalha há 20 anos no TJA e conhece bem os gostos dos artistas. Serena e sempre a postos, é ela quem me ensina a passar, impecavelmente, as roupas dos personagens e a ficar atenta à demanda por água, lanche, favores.

Ainda na copa, a vida me apresenta Dulce Monteiro, 53, camareira que faz par com dona Ana. Dulce é a gentileza em pessoa. Ela me responde que não usaria a palavra “importante” para se definir no dia a dia do TJA, “Eu diria útil”. Antes de ser camareira, foi recepcionista e indicadora (pessoa que orienta os espectadores), engolindo a falta de educação de quem insiste em entrar na sala de espetáculos com alimentos e bebidas.

Tem muita gente que ignora as regras e as pessoas. Não acreditei quando o moço bem vestido avançou Theatro adentro, deixando o desenho da mão na porta de vidro que eu e a Deusa (de batismo, Francisca Deuzimar Araújo) tínhamos acabado de limpar. Nem usou o puxador e nem pediu desculpas pelo descuido. O amigo dele reparou na minha cara de desaprovação, chamou-lhe a atenção, mas o moço bem vestido não olhou pra trás.

Colegas de trabalho
Refeito o serviço e, depois de ajudar Deusa a varrer a lateral do Theatro, voltei para o Porão. O expediente nos bastidores ia até a gravação do DVD do humorista Bené Barbosa (Papudim), umas 22 horas. Outra rodada de café e de prosa, então.

Dona Ana, Dulce e eu conversamos a falta de tempo para retocar o esmalte, o culto da igreja, o almoço, a costura, a menopausa que acalora, filhos, divórcios, netos, novelas, assaltos. Há pouco, roubaram a bolsa de Dulce, “com o Passcard, os óculos de marca, meus dois celulares, minha melhor maquiagem, inclusive, dois batons novos, um de R$ 27 e outro de R$ 29”.

Trocando experiências e esperanças sobre casamento, ficamos “colegas de trabalho”, como nomeou Dulce. E modéstia à parte, eu caprichei no serviço. Não podia fazer menos do que dona Ana me ensinou: “O Theatro é o cartão postal da Cidade, é preciso que as pessoas zelem mais. Porque é como nossa casa”.

Ah! E o camarim foi meu canto dileto. Limpei as bancadas (imaginando maquiagens), uma mesinha de acrílico (que ia compor o cenário do Papudim) e as cadeiras onde o povo famoso senta. Acendi as luzes e, num instante, eu também era artista. Sorri pra mim mesma.

Pelas seis e pouco da noite, Dulce pergunta se estou cansada. Olhei para a camareira - e vi os filhos que criou, o neto por criar, o almoço do dia seguinte, os sonhos a conta gotas - e fiquei com vergonha de dizer que sim. “Não! Pode me dar mais coisa pra fazer!”. Ela sorriu seu milésimo sorriso e me ofereceu o celular para assistir à novela, que o capítulo era importante.

As 22 horas, finalmente, chegaram e trouxeram meu noivo. Dona Ana e Dulce vão ficar, que o espetáculo continua no palco principal. “Quando vier no Theatro, venha ver a gente no Porão!”, acenou Dulce. “Voltarei, sim, com outros olhos!”, agradeci.

Antes de arrumar as saudades do dia e ir embora, espiei o show do Papudim pelas brechas do Porão. E avistei a mesinha de acrílico que eu tinha limpado, colocada bem no meio do palco. Aquilo me deu uma satisfação! Posso até ter passado despercebida, nos bastidores, mas meu trabalho vai aparecer no DVD. O teatro não é muito diferente da vida.
Ana Mary C. Cavalcante anamary@opovo.com.br


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