Para encarar a maior
faxina a que me propus até aqui, escolhi o turno da tarde/noite, das 14
às 22 horas. Porque, às 7 e meia da manhã, quando começa o primeiro
expediente da zeladoria no Theatro José de Alencar (TJA), não encaro nem
pensamento – quanto mais ônibus lotado e trânsito sem-fim. Palmas para
Deusa, Jaqueline, Mariazinha e tantas que cuidam de filho, marido, casa e
de si próprias antes mesmo do dia no Theatro.
Chego ao TJA em
uma terça-feira quente, depois do almoço e de marcar meu casamento no
cartório. As vidas – minha, da Dulce, da dona Ana e de quantos passarem
por nós, com pressa ou com abraços – vão se encontrar e se misturar em
olhares, prosas, risos e lamentos e nos amores que cada um tem a seu
modo. E assim vão terminar o tempo mais amplas.
O TJA me
recebe de portas abertas desde o e-mail da diretora Izabel Gurgel: “Seja
bem-vinda, Ana Mary! Bom trabalho! Bons encontros!”. Mas ela previne
que poderei me surpreender com a sujeira deixada por espectadores e
visitantes, que derramam pipoca e grudam chicletes em todo canto, e
também com a situação dos banheiros – que acabam servindo ao povo do
Centro, já que a Cidade não oferece banheiros públicos. Mais um motivo
para eu vestir a camisa do lugar-monumento, um dos mais belos
patrimônios de Fortaleza, inaugurado em 1910.
Na primeira hora
da faxina, sinto-me perdida nos 12 mil metros quadrados do Theatro.
Olho o jardim projetado pelo paisagista Burle Marx (com mais de 50 tipos
de plantas), os quatro pisos da sala principal (plateia, balcão e
frisas, camarotes, torrinha), o foyer e o salão nobre de 120 lugares;
calculo o número de banheiros, as escadas e mais escadas em ferro, os
imensos vitrais, o tamanho do palco principal; reconto as centenas de
cadeiras de palhinha... sem saber por onde começar a limpeza.
Claro
que uma andorinha só não faz essa manutenção. Diversas mãos cuidam do
TJA: Deusa, Jaqueline, LuciBranca, Mariazinha e Nilda formam a equipe de
zeladoria, indica Izabel Gurgel. “Mais dona Ana e Dulce, que são
camareiras. Gadelha e Ítalo estão na técnica e são coringas. Uma limpeza
feita no jardim, no Carnaval, por exemplo, contou com Gadelha e Nilda”,
completa a diretora.
Café e histórias
Comecei
a conhecer cada um e os bastidores pelo Porão, espaço sob o palco
principal e que pode se transformar em um recanto de encenações. É no
Porão, assombram, que a bailarina fantasma dança há eternidades. Mas eu
só vi mesmo foram quatro camarins, dois banheiros, uma copa, uma sala
administrativa e móveis para dar uma geral.
O café de dona
Ana me chamou, primeiro, para a copa. A camareira Ana Maria Silva de
Souza trabalha há 20 anos no TJA e conhece bem os gostos dos artistas.
Serena e sempre a postos, é ela quem me ensina a passar, impecavelmente,
as roupas dos personagens e a ficar atenta à demanda por água, lanche,
favores.
Ainda na copa, a vida me apresenta Dulce Monteiro,
53, camareira que faz par com dona Ana. Dulce é a gentileza em pessoa.
Ela me responde que não usaria a palavra “importante” para se definir no
dia a dia do TJA, “Eu diria útil”. Antes de ser camareira, foi
recepcionista e indicadora (pessoa que orienta os espectadores),
engolindo a falta de educação de quem insiste em entrar na sala de
espetáculos com alimentos e bebidas.
Tem muita gente que
ignora as regras e as pessoas. Não acreditei quando o moço bem vestido
avançou Theatro adentro, deixando o desenho da mão na porta de vidro que
eu e a Deusa (de batismo, Francisca Deuzimar Araújo) tínhamos acabado
de limpar. Nem usou o puxador e nem pediu desculpas pelo descuido. O
amigo dele reparou na minha cara de desaprovação, chamou-lhe a atenção,
mas o moço bem vestido não olhou pra trás.
Colegas de trabalho
Refeito
o serviço e, depois de ajudar Deusa a varrer a lateral do Theatro,
voltei para o Porão. O expediente nos bastidores ia até a gravação do
DVD do humorista Bené Barbosa (Papudim), umas 22 horas. Outra rodada de
café e de prosa, então.
Dona Ana, Dulce e eu conversamos a
falta de tempo para retocar o esmalte, o culto da igreja, o almoço, a
costura, a menopausa que acalora, filhos, divórcios, netos, novelas,
assaltos. Há pouco, roubaram a bolsa de Dulce, “com o Passcard, os
óculos de marca, meus dois celulares, minha melhor maquiagem, inclusive,
dois batons novos, um de R$ 27 e outro de R$ 29”.
Trocando
experiências e esperanças sobre casamento, ficamos “colegas de
trabalho”, como nomeou Dulce. E modéstia à parte, eu caprichei no
serviço. Não podia fazer menos do que dona Ana me ensinou: “O Theatro é o
cartão postal da Cidade, é preciso que as pessoas zelem mais. Porque é
como nossa casa”.
Ah! E o camarim foi meu canto dileto.
Limpei as bancadas (imaginando maquiagens), uma mesinha de acrílico (que
ia compor o cenário do Papudim) e as cadeiras onde o povo famoso senta.
Acendi as luzes e, num instante, eu também era artista. Sorri pra mim
mesma.
Pelas seis e pouco da noite, Dulce pergunta se estou
cansada. Olhei para a camareira - e vi os filhos que criou, o neto por
criar, o almoço do dia seguinte, os sonhos a conta gotas - e fiquei com
vergonha de dizer que sim. “Não! Pode me dar mais coisa pra fazer!”. Ela
sorriu seu milésimo sorriso e me ofereceu o celular para assistir à
novela, que o capítulo era importante.
As 22 horas,
finalmente, chegaram e trouxeram meu noivo. Dona Ana e Dulce vão ficar,
que o espetáculo continua no palco principal. “Quando vier no Theatro,
venha ver a gente no Porão!”, acenou Dulce. “Voltarei, sim, com outros
olhos!”, agradeci.
Antes de arrumar as saudades do dia e ir
embora, espiei o show do Papudim pelas brechas do Porão. E avistei a
mesinha de acrílico que eu tinha limpado, colocada bem no meio do palco.
Aquilo me deu uma satisfação! Posso até ter passado despercebida, nos
bastidores, mas meu trabalho vai aparecer no DVD. O teatro não é muito
diferente da vida.
Ana Mary C. Cavalcante
anamary@opovo.com.br
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