segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Manuscritos de fé

Em "Papel Passado", o historiador Régis Lopes analisa as cartas escritas e recebidas por Padre Cícero e seu papel na construção do mito do santo REPRODUÇÃO

Símbolo máximo da religiosidade e da fé na região do Cariri, Padre Cícero parece ser assunto inesgotável de pesquisa. Uma das mais recentes, empreendida pelo historiador Régis Lopes, resultou no livro "Papel passado: cartas entre o Padre Cícero e os devotos", a ser lançado, amanhã, no Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (Mauc).
O trabalho debruça-se tanto sobre as correspondências enviadas pelos devotos quanto aquelas escritas pelo padre a outros destinatários. O material foi selecionado a partir do acervo do Memorial Padre Cícero, em Juazeiro do Norte - que guarda, na verdade, cópias das cerca de 800 cartas e bilhetes originais guardados no Arquivo dos Salesianos, na mesma cidade.

"Papel passado" é o segundo volume da Coleção ao Portador, do Instituto Frei Tito de Alencar, que reúne coletâneas de correspondências e análises sobre cartas. Lopes ressalta a importância das missivas como documentos históricos, onde é possível verificar diversos aspectos sobre determinada sociedade, personagem ou época. "Cartas de intelectuais, por exemplo, podem mostrar a história do pensamento. Ou podem revelar informações sobre a vida de figuras importantes, suas relações pessoais", explica o historiador.

Documentos históricos
Lopes já escreveu outros três livros sobre a devoção em torno de Padre Cícero e as romarias de Juazeiro do Norte. A questão das cartas, especificamente, já havia sido abordada em um dos capítulos de "O Verbo Encantado: a construção do Padre Cícero no imaginário dos devotos" (1998). O novo trabalho, porém, traz uma mudança de perspectiva sobre o assunto.

"Comecei a pesquisar o acervo do Memorial para minha dissertação de mestrado. ´Papel passado´ é a retomada dessa pesquisa, mas tendo como objeto central as próprias correspondências, que passam a ser vistas não apenas como manifestação ou expressão da fé, mas como elemento construtor da própria fé", esclarece Lopes.

Em relação ao conteúdo das cartas, o historiador ressalta um aspecto em particular. "90% dos pedidos eram em relação à saúde. Os romeiros solicitavam indicação de remédio ou mesmo a cura para suas mazelas", frisa Lopes. "Por meio dessas correspondências, verifica-se a concepção de saúde da época e do lugar, fortemente ligada à esfera da natureza. Muitos romeiros, por exemplo, relatavam que os sintomas pioravam em noite de lua cheia", analisa.

Ainda de acordo com Lopes, Padre Cícero estava integrado a essa percepção. "Os remédios que ele ´receitava´ já existiam na tradição popular, a exemplo dos chás e emplastros de ervas. A cura, porém, não se dava unicamente através da medicação, mas também do contato com o santo. Nesse sentido, a carta é parte da devoção. A partir do momento em que a pessoa escreve, passa a acreditar ainda mais", analisa Lopes

Pedidos

Quanto aos outros tipos de pedidos, o historiador ressalta que variavam bastante. "Os devotos solicitavam de tudo, desde um pedaço de terra até uma galinha, um jumento. Havia ainda perguntas sobre a possibilidade de chuva, pedido de orientação ou intervenção para resolver conflitos de casamento, de posse por terra", explica Lopes.

"Em 1910, por exemplo, ocasião da passagem do cometa Halley, muitos romeiros imaginaram que seria o ´fim dos tempos´ e escreveram a Padre Cícero querendo saber como proceder", explica o autor.

"Havia casos como ´fulano ia casar comigo, não vai mais´, ou ´beltrano tomou minha terra´. Nessas ocasiões, o Padre escrevia de volta para as respectivas pessoas orientando a ´casar´ ou a ´não tomar a terra do outro´", comenta o autor. "Em outros momentos mais delicados, era necessário solicitar ajuda de outros párocos, de políticos, coronéis. Por exemplo, há uma carta dele ao Presidente Getúlio Vargas pedindo que fosse resolvido o problema da construção de açudes em Juazeiro".

Assim, Padre Cícero mantinha uma posição ambígua, a partir da qual ajudava e respondia às cartas dos romeiros, mas também escrevia pedindo ajuda à rede de amizades. "Nesse sentido, trabalhei com o conceito de ´homem cordial´, de Sérgio Buarque. A expressão é usada para descrever o homem brasileiro, que, segundo o autor, tenta resolver suas questões por meio das relações de amizade e afeto. Padre Cícero é uma manifestação clara de ´homem cordial´, pois usava de sua influência", observa Lopes.

Sagrado x terreno
Para o historiador, a capacidade de administrar conflitos e o fluxo de cartas foi aspecto fundamental na construção do poder do padre no imaginário popular. "Ele mesmo tem uma carta na qual refletia sobre a importância de os romeiros receberem suas respostas. Havia secretários para ajudá-lo a organizar o trânsito intenso de correspondências, eram cerca de 200 por mês. Então sua casa funcionava como uma espécie de central de atendimento mesmo", avalia Régis Lopes.

"Esse aspecto nunca foi estudado com profundidade, como ele ganhou tanto poder diante dos romeiros", complementa o autor. Nesse sentido, é possível distanciar o padre da esfera do sagrado e trazê-lo mais para o universo terreno. "Precisamos perceber que o santo é construído através da terra. Gosto de dizer que o poder do Padre Cícero não caiu do céu", brinca o autor cearense.

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Com lançamento adiado, o livro "Papel passado: cartas entre o Padre Cícero e os devotos", do historiador Régis Lopes, finalmente chega ao público. A publicação aborda a troca de missivas entre o santo de Juazeiro e seus devotos
Livro "Papel passado: cartas entre Padre Cícero e os devotos" Régis Lopes
Instituto frei Tito de Alencar
2011
224 páginas
R$ 15
Lançamento - Amanhã, às 19 horas, no Museu de Arte da UFC (Av. da Universidade, 2954, Benfica). Contato: (85) 366.7481

ADRIANA MARTINSREPÓRTER

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