Ao passar pelos cruzamentos das avenidas de Fortaleza, já se pode notar a nova geringonça chinesa que vem sendo vendida pelos camelôs. Diferente das outras, a novidade "made in china", na verdade, não tem nada de nova, pelo contrário, é milenar: são as pipas. Aquelas, multicoloridas, em forma de águia... Você já viu? Como todo produto "ching ling" das esquinas, a venda tem sua origem no Centro da cidade, e como não poderia faltar, em um de seus pontos mais movimentados: a Praça José de Alencar.Quem caminha pela Rua General Sampaio já pode avistar as raias no alto do céu da praça. Ali, um par de mãos queimadas de sol agarram com habilidade o cordão de náilon. Aquelas mãos já quarentonas até pareciam ter sido feitas para aquilo, para fazer meros 30 centímetros de poliéster alçar voo suavemente. Mas não.
Na infância, o dono daquelas mãos não tinha o costume de manejá-las. As recordações de menino passam longe de piões, cordas, bolas ou cirandas, fincadas, na verdade, a cabos de enxada. O pai não lhe deixara sequer conhecer papel e caneta, e, desse modo, o menino cearense, criado em lavouras do interior paulista, cresceu sem estudo, sabendo apenas de trabalho.
Sobrevivência
Antônio Otávio de Lima, 43, é natural do Ceará, mas muito cedo mudou-se para São Paulo, onde permaneceu por 15 anos. Trocou o campo pela cidade e diz ter rodado o mundo inteiro, ainda jovem. Para viver, fez de tudo, como os típicos mochileiros sem rumo que vão aprendendo a se virar. A venda ambulante, no entanto, esteve sempre forte entre um serviço e outro. E as mãos de lavrador aprenderam a carregar mercadoria, passar troco e esconder o material do "rapa", que dificultava o comércio no furdunço das feiras livres. "Não dava mais pra viver em São Paulo, aí eu vim embora, né, mano? Aqui é melhor", comenta satisfeito. Reencontrou uma parte da família e agora, devagar, vai se estabelecendo novamente na capital cearense.
E quando, no verso do calendário, despontou o mês de julho, Otávio guardou as flanelas, os forros de direção e as capas de celular para investir em outro negócio. Não muito longe da praça, o mulato subiu as escadas da Galeria Pedro Jorge para encontrar seu novo produto. Ali, dividindo espaço com a tradicional Galeria do Rock, estão as lojas de atacado, os mais importantes pontos de abastecimento dos camelôs da cidade. Bateu o olho e decidiu a mercadoria: as pipas chinesas.
"Tem de todo jeito e é de plástico, então se molhar não estraga, né, mano? As crianças de férias: é venda garantida!", explica Otávio, com ar de pequeno empresário. E aquelas mãos logo se acostumariam com o novo ofício: os calos da enxada e dos suportes de arame dariam lugar à marca da firmeza das linhas.
Ao invés de aguardar o sinal vermelho dos cruzamentos, trabalha com os olhos no horizonte.
Parceria
No bornal que traz colado ao corpo, Otávio leva diariamente cerca de dez pipas. Tem mesmo de todo o tipo: corujas, falcões, aviões e até peixes enfeitam o cantinho da Praça José de Alencar, ali perto do Shopping Metrô e da Igreja dos Remédios. Quem gostou de ver o mulato empinando pipas todo santo dia por aquelas bandas foi o menino Francisco. Estudante, de apenas 10 anos, em tempos de férias da escola, ele deixa o bairro Panamericano todos os dias e vai com a mãe para a praça, onde a senhora vende água e café. A princípio, Francisco se aproximou, achou bonito. Depois, perguntou se podia brincar com uma. Otávio então, em acordo com a mãe do garoto, promoveu-o a "parceiro de vendas". "Ele fica brincando e o povo vê e acha bonito, pergunta quanto é. Aí a gente fez um trato: ele solta pipa pra mim e, no final do dia, eu dou um trocado pra ele". Otávio, que rodou o mundo, mas não pôs nele nenhuma cria, ficou contente com o parceiro: "É bonito ver as crianças brincando. Se eu tivesse um filho, ele tava aqui comigo. É a herança da gente no mundo".
O encontro com Otávio e Francisco para a matéria aconteceu numa manhã de céu aberto no local de sempre. Assim que cheguei, o convite: "A senhora quer uma pra soltar?". Não recusei e brinquei também. O vento estava arredio e o pouco movimento da praça deixava o lugar do jeito que Francisco gostava: com espaço pra correr o quanto quisesse.
Era cedo e as vendas ainda iam fracas, mas os passantes já começavam a perguntar o preço. R$ 8. Convidativo, já que, nos sinais de trânsito custa cerca de R$ 15 e, na praia, chega a R$ 20 facinho. Feitas em material sintético muito leve, as pipas chinesas saltam da mão à menor brisa e superam a resistência dos papagaios de papel seda e palito de churrasco que povoam a infância de muitos (a minha também).
Aliás, lembranças desses bons tempos parecem tomar os ares da praça junto com as pipas. Uma senhora loira aparece, pergunta o preço. E logo: "Oh, que tempo bom, eu lembro demais quando eu brincava de pipa no sertão, com meus irmãos!". O senhor de idade aproveita a prosa e diz que era o rei do pião e do rolimã na rua dele e a mulher grávida intervém também, lembrando que seu preferido era mesmo jogo de pedra e passa-anel. E Francisco, entretido com sua pipa, apenas olha ressabiado já que, seguramente, ele desconhece algumas daquelas brincadeiras.
Quando acabar as férias, o garoto da periferia vai voltar para a escola, jogar bola no recreio. Otávio também tem seu plano: vai voltar a vender utensílios de carro e aqueles esqueletos que se colocam no retrovisor. "Aquilo vende pra caramba, mano!" Mas a geringonça chinesa, fabricada dia desses do outro lado do mundo, já terá revelado verdadeira função: não é proporcionar aerodinâmica com as hastes de plástico, nem garantir o salto mesmo com uma pequena calda e muito menos voar.
O sustento escolhido por aquelas mãos queimadas de sol de Otávio foi feito, na verdade, para atrasar o passo e confortar a memória dos que cruzam a José de Alencar nesse mês de julho. Para fazer nascer um brilho salutar no olhinho das crianças pequenas e já adultas, que quase tropeçam de tanto olhar para o alto. Essa terá sido a utilidade da velha e sempre nova geringonça chinesa.
MAYARA DE ARAÚJOREPÓRTER
Na infância, o dono daquelas mãos não tinha o costume de manejá-las. As recordações de menino passam longe de piões, cordas, bolas ou cirandas, fincadas, na verdade, a cabos de enxada. O pai não lhe deixara sequer conhecer papel e caneta, e, desse modo, o menino cearense, criado em lavouras do interior paulista, cresceu sem estudo, sabendo apenas de trabalho.
Sobrevivência
Antônio Otávio de Lima, 43, é natural do Ceará, mas muito cedo mudou-se para São Paulo, onde permaneceu por 15 anos. Trocou o campo pela cidade e diz ter rodado o mundo inteiro, ainda jovem. Para viver, fez de tudo, como os típicos mochileiros sem rumo que vão aprendendo a se virar. A venda ambulante, no entanto, esteve sempre forte entre um serviço e outro. E as mãos de lavrador aprenderam a carregar mercadoria, passar troco e esconder o material do "rapa", que dificultava o comércio no furdunço das feiras livres. "Não dava mais pra viver em São Paulo, aí eu vim embora, né, mano? Aqui é melhor", comenta satisfeito. Reencontrou uma parte da família e agora, devagar, vai se estabelecendo novamente na capital cearense.
E quando, no verso do calendário, despontou o mês de julho, Otávio guardou as flanelas, os forros de direção e as capas de celular para investir em outro negócio. Não muito longe da praça, o mulato subiu as escadas da Galeria Pedro Jorge para encontrar seu novo produto. Ali, dividindo espaço com a tradicional Galeria do Rock, estão as lojas de atacado, os mais importantes pontos de abastecimento dos camelôs da cidade. Bateu o olho e decidiu a mercadoria: as pipas chinesas.
"Tem de todo jeito e é de plástico, então se molhar não estraga, né, mano? As crianças de férias: é venda garantida!", explica Otávio, com ar de pequeno empresário. E aquelas mãos logo se acostumariam com o novo ofício: os calos da enxada e dos suportes de arame dariam lugar à marca da firmeza das linhas.
Ao invés de aguardar o sinal vermelho dos cruzamentos, trabalha com os olhos no horizonte.
Parceria
No bornal que traz colado ao corpo, Otávio leva diariamente cerca de dez pipas. Tem mesmo de todo o tipo: corujas, falcões, aviões e até peixes enfeitam o cantinho da Praça José de Alencar, ali perto do Shopping Metrô e da Igreja dos Remédios. Quem gostou de ver o mulato empinando pipas todo santo dia por aquelas bandas foi o menino Francisco. Estudante, de apenas 10 anos, em tempos de férias da escola, ele deixa o bairro Panamericano todos os dias e vai com a mãe para a praça, onde a senhora vende água e café. A princípio, Francisco se aproximou, achou bonito. Depois, perguntou se podia brincar com uma. Otávio então, em acordo com a mãe do garoto, promoveu-o a "parceiro de vendas". "Ele fica brincando e o povo vê e acha bonito, pergunta quanto é. Aí a gente fez um trato: ele solta pipa pra mim e, no final do dia, eu dou um trocado pra ele". Otávio, que rodou o mundo, mas não pôs nele nenhuma cria, ficou contente com o parceiro: "É bonito ver as crianças brincando. Se eu tivesse um filho, ele tava aqui comigo. É a herança da gente no mundo".
O encontro com Otávio e Francisco para a matéria aconteceu numa manhã de céu aberto no local de sempre. Assim que cheguei, o convite: "A senhora quer uma pra soltar?". Não recusei e brinquei também. O vento estava arredio e o pouco movimento da praça deixava o lugar do jeito que Francisco gostava: com espaço pra correr o quanto quisesse.
Era cedo e as vendas ainda iam fracas, mas os passantes já começavam a perguntar o preço. R$ 8. Convidativo, já que, nos sinais de trânsito custa cerca de R$ 15 e, na praia, chega a R$ 20 facinho. Feitas em material sintético muito leve, as pipas chinesas saltam da mão à menor brisa e superam a resistência dos papagaios de papel seda e palito de churrasco que povoam a infância de muitos (a minha também).
Aliás, lembranças desses bons tempos parecem tomar os ares da praça junto com as pipas. Uma senhora loira aparece, pergunta o preço. E logo: "Oh, que tempo bom, eu lembro demais quando eu brincava de pipa no sertão, com meus irmãos!". O senhor de idade aproveita a prosa e diz que era o rei do pião e do rolimã na rua dele e a mulher grávida intervém também, lembrando que seu preferido era mesmo jogo de pedra e passa-anel. E Francisco, entretido com sua pipa, apenas olha ressabiado já que, seguramente, ele desconhece algumas daquelas brincadeiras.
Quando acabar as férias, o garoto da periferia vai voltar para a escola, jogar bola no recreio. Otávio também tem seu plano: vai voltar a vender utensílios de carro e aqueles esqueletos que se colocam no retrovisor. "Aquilo vende pra caramba, mano!" Mas a geringonça chinesa, fabricada dia desses do outro lado do mundo, já terá revelado verdadeira função: não é proporcionar aerodinâmica com as hastes de plástico, nem garantir o salto mesmo com uma pequena calda e muito menos voar.
O sustento escolhido por aquelas mãos queimadas de sol de Otávio foi feito, na verdade, para atrasar o passo e confortar a memória dos que cruzam a José de Alencar nesse mês de julho. Para fazer nascer um brilho salutar no olhinho das crianças pequenas e já adultas, que quase tropeçam de tanto olhar para o alto. Essa terá sido a utilidade da velha e sempre nova geringonça chinesa.
MAYARA DE ARAÚJOREPÓRTER
gostaria de saber como faço pra compras 100 pipas variadas dessas e receber em minha residencia... entre em contao por favor 79 9888 7484 giselle meu e mail eh giselle_devid@hotmail.com
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